Só constatei que os tempos mudaram quando participei de uma reunião sobre cobertura de guerra com o então celebrado único repórter brasileiro em Bagdá sob bombardeio americano, Sérgio Dávila, da Folha de S.Paulo. Uma foto dele foi projetada no Centro Cultural Itaú lotado. Mostrava-o de capacete e colete a prova de balas. E ele contou que tinha feito um curso para reportar em zona de combate. Aí foi a minha vez de surgir na tela. Vestia uma camiseta com a bandeira do Brasil e corria sob tiros numa rua do Panamá, durante a invasão americana que derrubou o general Manuel Noriega, em 1989 A platéia riu. Eu não sabia de lições de guerra que não as aprendidas no front.
Meu batismo de fogo foi no Líbano, na invasão israelense de 1979 que vingou o sequestro de um ônibus por um grupo da OLP, só brecado a bala já na entrada de Tel-Aviv, ao lado do apartamento em que me instalara para cobrir o processo de paz iniciado pelo presidente egípcio Anuar Sadat. Todos mortos, passageiros e terroristas.
Toque de recolher na cidade. Dia seguinte, janelas tremiam sob o boom supersônico da aviação. Mobilização de tropas. Aos correspondentes estrangeiros foi oferecido um ônibus que os levaria e os traria de volta das áreas de combate, diariamente.
Como não havia laptop e celular, todos precisávamos de telex – e a maioria usava os da Reuters. Voltávamos todos rascunhando textos em blocos de anotação.
Ataque aéreo
A segunda invasão israelense do Líbano, em 1982, chegou a Beirute. Os correspondentes iam à retaguarda das tropas. Mas quem quisesse, podia passar ao front da OLP. Foi o que fiz. Assinei na fronteira um papel pelo qual me responsabilizava pela decisão de entrar em zona de combate e recebi o pano com que deveria cobrir o teto de fora do carro, cada dia de uma cor diferente para sinalizar aos pilotos que ali ia alguém da imprensa.
A estrada era o sulco aberto pelas sapatas dos tanques. Aldeias fumegavam pelo caminho. Carcaças de carros por toda a parte. No hotel Commodore, no centro muçulmano, reuni-me ao reportariado do mundo todo. Em cada guerra, há sempre um hotel eleito pela imprensa.
As facções em guerra vendiam no lobby pelas manhãs a tradução, com viés, dos jornais em árabe. Para as informações de Israel era preciso cruzar para o lado cristão, onde havia até mesmo telexes para a imprensa credenciada em Tel-Aviv. Mas havia muitos checkpoints. O meu carro trazia placa de Israel, o inimigo, e eu cultivava uma longa barba. Era suspeito sempre. E me perguntavam onde tinha comprado um passaporte brasileiro ‘tão bem feito’.
Corríamos atrás de aviões sírios abatidos como se fossem balões. E no final do trabalho, jantávamos com vista para os rastros luminosos das balas traçantes, disparadas de cada lado do porto de Beirute. Acabamos a cobertura em Sabra e Shatilla, onde as milícias cristãs libanesas entraram para vingar o as assassinato de seu líder Bashir Gemayel, sob o olhar complacente das tropas comandadas pelo general Ariel Sharon, e mataram centenas de palestinos. Arafat partira do Líbano no navio Atlântida, a Palestina um continente perdido.
Assim vivíamos. Cobri a primeira guerra do Golfo em Israel, alvo dos foguetes Scuds iraquianos. No início, os repórteres punham máscaras ao soar o alarme de ataque aéreo, porque se temia que as ogivas contivessem gás. Segundos depois do impacto, um clarão, repórteres e fotógrafos se bipavam para decidir para onde deveriam ir, sem esperar a localização oficial divulgada em geral pelas rádios.
Terceira geração
Curioso como os repórteres de guerra tendem a se rever em outros fronts. Em El Salvador, durante ataques dos guerrilheiros da Farabundo Marti, encontrei alguns dos que conheci em Beirute. Aqui morreram mais fotógrafos do que no Líbano. E de nada adiantavam as camisetas dizendo ‘Não atire em Mim, Imprensa’, em vários idiomas e letras grandes. Os cadáveres ficavam pelas ruas. A cidade cheirava a morte. Também estive na guerra Peru-Equador, nos dois lados de confronto. E peguei o final da tragédia em Ruanda. Voltei várias vezes ao Oriente Médio – para paz, para atentados, para eleições, as duas intifadas e reportagens especiais com palestinos em Gaza e na Cisjordânia. A eleição de Mandela, na África do Sul, foi quase uma guerra, tantas bombas explodiram. E cobri o massacre da Aids no Zimbabwe.
Estive na Macedônia à espera de entrar na Iugoslávia. O José Hamilton Ribeiro foi da primeira geração de correspondentes de guerra brasileiros. Outros foram o Evaldo Dantas, que esteve em Gaza, e Nahum Sirotsky, até hoje em Israel. Sou da segunda geração, e muito bem acompanhado: Silio Bocanera, Rosenthal Calmon Alves, José Meirelles Passos, William Waak, Helinho Campos Mello, Rosa Freire D’Aguiar (cobriu o Líbano para a IstoÉ), Fernando da Silva Pinto, os falecidos Alessandro Porro (Veja) e Eliezer Strauch (O Globo), e outros a quem peço desculpas por agora não conseguir lembrar.
Na terceira geração, a atual, incluiria o Dávila, o Leão Serva, Lourival Sant´Anna e todos que estão na ativa tentando entrar nos fronts das guerras cada vez mais inacessíveis.
Hoje considero ‘românticas’ as ‘minhas’ guerras, em contraposição à segunda guerra do Golfo, a do Afeganistão e a de Gaza, agora, em que repórteres já não são mais embutidos às tropas, mesmo se submetendo à censura militar, e nem têm acesso à ação de verdade, relegados a porta-vozes, centros de imprensa, especialistas militares, à miríades de blogs, podcasts, twitter, redes mundiais de tevê e jornais locais. Pena…
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Diretor de Redação do Diário do Comércio (São Paulo)