Num opúsculo, Ciência e Desenvolvimento, uma dessas obras que todos nós deveríamos ler ao menos uma vez na vida, o filósofo da ciência Mario Bunge escreve que ‘um país subdesenvolvido é um país de mentalidade atrasada’.
Esta idéia tem pelo menos uma bifurcação imediata: 1) os conceitos que os economistas costumam utilizar para definir um país subdesenvolvido, entre eles o baixo consumo de energia elétrica, não passa do que nossos avós chamavam de ‘conversa mole’, tentativa de cientifização da economia, o que em outras palavras pode-se chamar de puro engodo; 2) o subdesenvolvimento tem raízes históricas e para ser extirpado é preciso que sua etiologia seja reconhecida por uma inteligência nacional, com capacidade intelectual e credibilidade moral para sensibilizar devidamente o conjunto da sociedade.
Em resumo, para superar o subdesenvolvimento, uma sociedade carece de educação. Não da educação formal, que se restringe a treinamento para execução de um conjunto de ações, na maior parte das vezes mecânico e, por isso mesmo, incapaz de frutificar.
É preciso ressuscitar a inteligência, supondo que em algum momento da história ela tenha se manifestado de forma menos esquiva.
Princípio de inércia
A discussão nas manchetes dos jornais, envolvendo o ‘motim’ dos controladores aéreos – e a confusão que se arrasta há meses pelos saguões de aeroportos – é uma prova inequívoca de como a mentalidade atrasada, e por conseqüência autoritária, está disseminada entre nós.
Legalistas e hierarcas de todos os tipos e portes argumentam, em benefício de certa cientificidade de suas teses, que a hierarquia foi violada e/ou saiu arranhada do episódio que, além da paralisação dos controladores, envolveu uma desastrada intervenção do presidente da República. Advogados, por dever de ofício, avaliam que o direito que rege a vida militar foi violentado.
O problema dessas análises é que elas tomam como ponto de partida certo estágio do processo, sem levar em conta o condicionamento histórico. Em outras palavras: com base no princípio de inércia – a resistência que um corpo tem de alterar seu estado de repouso ou movimento – pode-se concluir que se os operadores não tivessem uma boa razão para manifestar descontentamento, certamente estariam cumprindo suas obrigações sem dispersão de energia.
Esta é uma interpretação minimamente lógica, ainda que muitos possam enxergar aqui motivações ideológicos e inconsistências equivalentes.
Tomar a questão por este ângulo – do princípio de inércia – não pressupõe o entendimento dos operadores como exemplos de integridade na execução de tarefas que são de importância fundamental na vida de cada um de nós. Pelo menos daqueles que, vez ou outra, embarcam num avião – ou vivem e se deslocam sob o espaço aéreo deles. Da mesma forma que não autoriza a qualificá-los como pouco mais que bandoleiros, foras-da-lei irresponsáveis, imagem que começa a tomar forma depois da abrupta mudança de posição do presidente da República quanto ao encaminhamento estrutural de uma solução.
Em resumo: os operadores ganham mal – como a maioria dos brasileiros –, são submetidos a enorme estresse, enfrentam desníveis salariais incompreensíveis entre civis e militares e há anos vêm denunciando essa situação de desconforto sem que enxerguem no horizonte sinais de encaminhamentos consistentes.
Limite natural
Esperem os leitores até um novo acidente ocorrer – o que, lamentavelmente, não deve demorar, levando em conta a aparente desorganização e a tensão de todos os lados – e operadores serão queimados como Judas, responsabilizados pelo que lhes escapa das mãos – mesmo depois da Semana Santa.
Se prevenir é a melhor solução – estratégia típica de países socialmente desenvolvidos – esperar pelo pior e buscar bodes expiatórios é a solução rotineira do subdesenvolvimento.
As chamadas ‘autoridades militares’ no jargão da mídia, especialmente o ministro da Aeronáutica, Juniti Saito, ficaram irritadas com a decisão – revista em seguida – do presidente da República de dialogar com os controladores, sutilmente referidos na mídia como ‘sargentos’, o que vai além de indicar baixa patente: qualifica-os como populacho, aqueles que devem sempre vergar a coluna e jamais reivindicar ou contestar a decisão que venha de cima, tenha procedência ou não.
Alguém que se envolva com a vida militar – ou eclesiástica – deve ou deveria saber o risco que corre ao ser obrigado a aceitar ordens sem contestação. Mas até para isso existe limite natural, inseparável da condição humana e esta é uma coisa que não se discute. Se reconhece, como parte das características humanas, ou não.
Memória e inteligência
Uns minutos de reflexão talvez ajudassem o ministro Saito a considerar que mesmo a disciplina que prega a ferro e fogo – o risco que se corre de ser um militar ou eclesiástico – deve ter base de assentamento. Tanto quanto a democracia, uma ponte ou um edifício. Sem base de fato, qualquer uma dessas edificações desmorona. Ou seja: se as bases operacionais dos controladores inexistem, não será a disciplina, acompanhada de iniciativas como ‘voz de prisão’, como pretendeu o ministro, que resolverão o impasse.
No Brasil, país de mentalidade senhorial, por mais que se discurse ao contrário, reflexões como esta seriam oportunidades preciosas de se substituir memória por inteligência.
Militares pregam a hierarquia rígida como força de coesão indispensável – no que devem ter razão, já que conhecem os ossos do ofício – mas não têm direito de chantagear a sociedade que, com seus impostos, paga os salários deles.
A ameaça velada – talvez mais detestável que a explícita – aparece com freqüência em artigos/opiniões dos legalistas/hierarcas, sempre disponíveis na função de moleques de recado dos poderes despóticos de que são admiradores por questão de formação.
Marca do caos social
‘Não há ameaça de ruptura institucional’, costumam invocar.
Por que deveria haver? Por que os militares perderam o controle precário que exercem sobre o tráfego aéreo? Quantos países do mundo mantêm o controle do tráfego aéreo sob mando militar? Brasil e Argentina, até onde é possível saber. O que indica que nos deslocamos na contramão até no espaço aéreo, consistentes com nosso subdesenvolvimento mental e material.
A solução, ou melhor que isso, a perspectiva de solução para um problema como o caos no controle aéreo deve ser procurada com base na racionalidade, naquilo que é mais apropriado à sociedade brasileira, e não como encaminhamento refém de interesses de poder de categorias – neste caso, do poder militar. Logo no início da crise, com o acidente do Boeing da Gol, oficiais militares reclamaram de ‘perda de poder’ quando se falou de desmilitarização do controle de vôo.
Certamente que militares, é razoável reconhecer, também sentem na pele as dificuldades vividas pelo conjunto da sociedade. Não estão ilhados dela e nem devem pretender isso. Uma dessas balas perdidas que assoviam no ar em busca de destino não discute patentes ou opções profissionais para atingir o alvo. Acerta o primeiro que encontrar no seu trajeto errático, mas deixa cada vez mais funda a marca do caos social que cresce sem perspectiva crível de minimização.
Raízes ibéricas
Militares costumam se referir aos civis, que pagam seus salários, com o desdém reservado a uma classe inferior de pessoas. Talvez porque pressuponham que a hierarquia de que se orgulham seja atributo de um outro tipo de gente. Hierarquia, no entanto, como tudo o mais, só faz sentido se devidamente circunstanciada e com isto vamos ao encontro de um dos mais notáveis pensadores desta nossa época de miséria filosófica, o pensador espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), que sempre se referiu ‘ao homem e suas circunstâncias’.
Pregar que militares troquem manuais de instrução pela leitura das obras de Ortega y Gasset é mais que quixotesco, deve-se reconhecer. Mas a intenção, de fato, não é esta. A intenção é sensibilizar a inteligência – pressupondo que historicamente ela possa ter sido menos esquiva que hoje, como já referido – na busca de uma solução criativa para este e outros impasses. Até porque os desafios nacionais neste momento vão muito além do retorno da ordem no controle do tráfego aéreo.
A patifaria velhaca dos políticos, enquanto categoria profissional, certamente deu e continua dando sua contribuição para a deterioração de valores que talvez nunca tenham sido suficientemente coesos entre nós – e isso por razões de natureza histórica. Nossas raízes nos prendem à Península Ibérica onde, no século passado, duas ferozes ditaduras deixaram ferimentos longe de devidamente cicatrizados.
Mídia busca identidade
As ditaduras do generalíssimo Francisco Franco, na Espanha, e de Antonio Salazar, em Portugal, tampouco foram manifestações extemporâneas. Elas também têm suas fiações históricas, neste caso ligadas à Contra-Reforma e aos atos que se seguiram a ela, especialmente a instauração da Inquisição, uma das maiores brutalidades já cometidas contra toda a humanidade nos corpos daqueles que foram sangrados pelos ferros e calcinados pelo fogo.
Daí a procedência da fala de Bunge de que o subdesenvolvimento – condição de que o Brasil não se desprendeu, apesar do formalismo discurso em contrário – é evidência de mentalidade atrasada. E não pensem os crédulos que a visita próxima do papa – o pastor alemão que até recentemente cuidava exatamente da doutrina da fé, eufemismo para o que restou da Inquisição – trará alguma contribuição positiva. A igreja que o papa representa é a raiz mais profunda, tanto da mentalidade atrasada, quanto do autoritarismo que deriva dela.
Como a mídia vai receber o papa?
A mídia, que nunca teve boa memória, nestes tempos turbulentos anda à procura de sua identidade.
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Jornalista