O Correio Braziliense de Hipólito da Costa foi louvado, invejado e combatido como qualquer veículo de referência. Entre 1808 e 1822, nos dois lados do Atlântico, a imprensa clerical não escondia o quanto o detestava, enquanto os correligionários maçons e liberais mostravam por ele o maior respeito.
Os problemas apareceram com as efemérides. Em 1908, quando começaram as celebrações do primeiro centenário da imprensa brasileira, instalou-se a primeira polêmica: qual teria sido o primeiro veículo brasileiro – o Correio Braziliense ou a Gazeta do Rio de Janeiro?
O contencioso sobre a primazia desdobrava-se numa questão pessoal: quem é o patriarca da imprensa brasileira, Hipólito da Costa que em Londres, ao longo de 14 anos, escreveu e editou o Correio, ou frei Tibúrcio José da Rocha, que dirigiu de 1808 a 1812, no Rio, a Gazeta? Oferecia-se também uma divergência ideológica: qual o critério para avaliar a qualidade de um veículo jornalístico, sua independência ou sua continuidade?
Ação direta
O Correio Braziliense, porque era impresso em Londres, circulou livre de qualquer censura, já a Gazeta do Rio de Janeiro jamais escondeu a sua vinculação com a Coroa portuguesa, tanto assim que em seguida à Independência transformou-se num ostensivo diário oficial.
Para atenuar os efeitos da drástica censura implantada pelo Estado Novo (em 1937), o presidente Getúlio Vargas ofereceu aos jornalistas uma série de benefícios – um deles, o estabelecimento do Dia da Imprensa. Dispunha de três opções em matéria de data, todas relacionadas com fatos ocorridos em 1808: o decreto autorizando o funcionamento da primeira tipografia no Brasil, assinado em 13 de maio; o primeiro texto, do primeiro número do Correio Braziliense, tem a data de 1º de junho; a primeira edição da Gazeta do Rio de Janeiro saiu do prelo em 10 de setembro.
Positivista, olhado com desconfiança pelo clero, Getúlio Vargas não titubeou em autorizar a encomenda de um enorme crucifixo no pico do Corcovado, em 1931. Agora, em 1943, novamente procurou agradar a Igreja e, ao invés de valorizar um órgão livre como o mensário de Hipólito da Costa, preferiu preteri-lo para não prestigiar um notório maçom, perseguido e preso pela Inquisição antes de refugiar-se na Inglaterra.
A data vendedora foi 10 de setembro, os jornalistas resignaram-se, obrigados a consagrar como paradigma o jornalismo oficial.
A mudança da data para 1º de junho, em 2001, foi uma vitória dos jornalistas e dos democratas já que o requerimento apresentado pelo deputado federal Nelson Marcherzan foi endossado pela bancada gaúcha, sem a ausência de qualquer partido.
Ironicamente, o pêndulo voltou-se contra os jornalistas e contra todos os que se empenham em preservar nossa memória e nossa história no exato momento em que, ao lado das comemorações da chegada da corte portuguesa ao Brasil, seriam festejados os 200 anos dos atos fundadores da nossa imprensa.
Um rigoroso e misterioso embargo impediu que a mídia impressa e a eletrônica registrassem qualquer referência sobre a instalação do primeiro prelo, o início da circulação do primeiro veículo sem censura e a impressão do primeiro periódico no país. A inédita mordaça foi obra da Opus Dei, o braço mais militante e mais reacionário da Igreja, que na ocasião estava intimamente conectada às corporações empresariais de mídia no Brasil.
Ofício primal
O pêndulo foi novamente revertido em 2010, quando a Presidência da República designou o primeiro Herói Nacional – o jornalista Hipólito José da Costa.
Recuperamos, enfim, a nossa história. E 203 anos depois podemos lembrar o primeiro parágrafo do primeiro texto a circular no Brasil livre de qualquer controle – profissão de fé daqueles cuja profissão não é reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, mas é o ofício primal de uma sociedade comprometida com a busca da verdade:
“O primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela. E cada um deve, segundo as suas forças físicas ou morais, administrar em benefício da mesma os conhecimentos ou talentos que a natureza, a arte ou a educação lhe prestou. O indivíduo que abrange o bem geral de uma sociedade vem a ser o membro mais distinto dela: as luzes que espalha tiram das trevas ou da ilusão aqueles que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do engano. Ninguém mais útil, pois, do que aquele que se destina a mostrar com evidência os acontecimentos do presente e desenvolver as sombras do futuro. Tal tem sido o trabalho dos redatores das folhas públicas quando estes, munidos de uma crítica sã e de uma censura adequada, representam os fatos do momento, as reflexões sobre o passado e as sólidas conjecturas sobre o futuro.” [Hipólito José da Costa, na primeira edição do Correio Braziliense]