Quem vê Aline Cântia em ação descrevendo com entusiasmo a sua experiência jornalística se surpreende ao tomar conhecimento da idade da moça: 22 anos. A bem da verdade, ela concluiu a graduação em Jornalismo no fim do ano passado. Um tempo tão curto, porém, não reflete o grau de maturidade que essa mineira de Belo Horizonte já foi capaz de adquirir. Durante três meses, entre 27 de dezembro de 2003 e 16 de fevereiro de 2004, Aline, ao lado do fotógrafo Leonardo Boloni, abandonou as comodidades da vida urbana e foi ver de perto o modus vivendi da comunidade Kalunga, remanescente de quilombo no sertão de Goiás.
‘Queria fazer alguma coisa diferente’, disse Aline em palestra na noite de segunda-feira (31/5), no 10º Encontro de Comunicação de Sergipe, no campus II da Universidade Tiradentes, em Aracaju.
Discutindo o viés do jornalismo como registro histórico, Aline enriqueceu o tema com nuances da sua incursão pelo Brasil profundo, trazendo à tona um tipo de relato que, normalmente, passa ao largo das páginas da grande imprensa. A sua iniciativa pode ser situada no âmbito da grande reportagem, um gênero que conheceu seus tempos áureos na década de 1970 com a pioneira revista Realidade, hoje considerado démodé pelos padrões do jornalismo pautado pelo fetiche do furo.
A preocupação de Aline em enveredar por um jornalismo alternativo, diverso da camisa-de-força normalmente praticada nos guetos das redações, já se manifestava nos tempos da faculdade. Enquanto estudante, ela produziu um programa de rádio, o Papo de botequim, e ajudou a criar uma cooperativa de jornalismo que chegou a contar com 20 integrantes. Aline visava, sobretudo, ‘outro jeito de fazer jornalismo e até ganhar dinheiro’. E, por que não, conquistar a perenidade, ultrapassando o imediatismo do factual, ‘saindo da margem e se tornando memória’, disse.
Visão retrabalhada
Movida por esse ideal, ela foi à luta. ‘Fiz um projeto e comecei a pedir dinheiro’, contou. ‘As pessoas me davam 10, 50 reais.’ Resolvido o problema orçamentário, Aline seguiu para o sertão de Goiás. Em meio à comunidade Kalunga, ela testou os seus limites de repórter, ultrapassando-os. ‘Cheguei lá com um olhar viciado, de jornalista, era registrar e achar que estava ótimo.’
Na comunidade moram 4.500 negros. O quilombo tem quase 500 anos de existência. É nesse cenário tão insólito quanto rico que Aline viveu denso aprendizado. O desafio fundamental de se fazer compreender demandou mudanças de postura. ‘Percebi que tinha que entrar na comunidade, mudar minha linguagem.’
Foi um esforço que implicou retrabalhar o ponto de vista do observador. ‘Eu tinha que pegar o olhar deles’, disse. ‘É fácil chegar com o nosso olhar e escrever qualquer coisa, que são miseráveis.’ Aline contou que, no início, enfrentou a desconfiança da comunidade. Jornalistas não angariavam muita simpatia por lá, tudo porque um coleguinha passou uma semana com os kalungas e a experiência rendera um livro, naturalmente detratando a comunidade, que ganhou a pecha de miserável e suja.
Falta quem conte
Para Aline, a convivência com os kalungas significou, além de tudo, um diálogo do jornalismo com a antropologia, esgarçando assim a fronteira do meramente factual. Da sua experiência, ela extraiu, por assim dizer, o seu manual pessoal de redação. O que ela aprendeu é que, em primeiro lugar, é preciso desconstruir a pauta. Trata-se de uma lição valorosa, uma vez que hoje, nas linhas de produção da notícia, não é incomum que repórteres cubram uma matéria com pré-julgamentos. O que Aline concluiu em seguida é que é preciso estabelecer uma observação participante. ‘Ia com as mulheres tomar banho nos rios’, afirmou. ‘Não quis registrar, quis conviver com eles, sem interferir.’
Essa lição remeteu ao passo seguinte: foi preciso aceitar a aventura de se colocar no lugar do outro. E, por último, mas não menos importante para Aline: foi preciso considerar o fator tempo para realizar um trabalho com profundidade. O açodamento da informação, o imperativo da velocidade propiciado por mudanças tecnológicas tem levado o jornalismo a ampla crise de identidade.
De posse de uma tremenda massa de informações, Aline se deparou com o desafio final: produzir o texto que contasse a história. ‘Como vou conseguir passar isso para o papel?’, perguntava-se. Mais uma vez, ela teve de construir seu caminho, criar uma narrativa que passava a milhas de distância do lead básico aprendido nos bancos da escola.
O trabalho de Aline evoca uma reflexão do jornalista Fernando Morais, que, à luz da sua larga experiência de grande contador de histórias (Olga, A ilha, Chatô), afirma que há no Brasil muitas histórias a serem contadas, falta quem as conte. Se depender da sensibilidade e do esforço de jornalistas como Aline Cântia, o público conhecerá ainda muitas histórias. Um exemplo disso é o projeto de revista de cultura que ela, mineiramente e com persistência, vai tocando, fruto da sua aventura nos rincões de Goiás.
A narrativa de Aline Cântia e as fotos de Leonardo Boloni estão nos endereços www.labcom.ubi.pt/agoranet/04/cantia-aline-boloni-leonardo-quilombo-kalunga.pdf e http://www.brasiloeste.com.br/noticia.php/1007
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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)