A hospitalização do presidente Jacques Chirac após um ‘pequeno acidente vascular cerebral’ na sexta-feira (2/9) causou especulações sobre o futuro político do líder francês. Acima de tudo, o problema, que originou um distúrbio na visão de Chirac e o manteve no hospital durante uma semana para observações e exames, deixou clara a fragilidade do comandante de 72 anos, que em seus dez anos de governo conseguiu manter intacta a imagem da boa forma física. Além disso, o estado de saúde em pauta agitou os rumores sobre a sucessão de Chirac em 2007, principalmente porque presidenciáveis como o premiê Domnique de Villepin tomaram o palco político francês.
Na imprensa, o debate esquentou e se concentrou na mania de segredo que o governo francês cultiva quando trata da saúde do presidente. Nesse contexto, vieram à baila o caso de Georges Pompidou, morto em 1974, e, como não poderia deixar de ser, o de François Mitterrand, morto em 1996. O câncer de Mitterrand foi diagnosticado em 1981 (ano da histórica chegada da esquerda francesa ao poder), mas o estado de saúde do presidente era ocultado sistematicamente pelo governo, transformando-o em ‘mentira de Estado’, nas palavras do vespertino Le Monde (7/9).
Nesse dia, o editorial do diário foi incisivo no ataque à falta de transparência das autoridades francesas, principalmente dentro do próprio governo. Naquela sexta-feira (2/9), sabiam da internação Bernardette e Claude Chirac, Frédéric Salat-Baroux (secretário-geral do Palácio do Eliseu) e a chefe do secretariado geral do presidente, Marthe Steffmann. Nem o premiê nem o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, haviam sido informados sobre a situação.
‘Na França, praticamos um culto do segredo similar ao do Kremlin quando falava de seus dirigentes, na ex-União Soviética. (…) Assim, em nossa República, cuja Constituição concede os maiores poderes ao presidente e chefe das Forças Armadas, o líder da nação pode ser vítima de um problema de saúde, seja leve ou grave, sem que os diferentes poderes do Estado sejam alertados do ocorrido’, diz o Le Monde.
‘Esse segredo-saúde na cúpula semeia a incerteza e nutre inquietações de dimensões talvez desproporcionais. Os comunicados do Val-de-Grâce [hospital militar onde Chirac ficou internado] não têm nenhum detalhe médico. Não se sabe nada sobre a origem, a dimensão e as conseqüências do ‘pequeno acidente vascular’ do chefe de Estado (…). Mas, para o Eliseu, é patente a importância de banalizar um incidente que realça, em momento inoportuno, a idade do ‘capitão’, além de deixar mais afastada a perspectiva de um terceiro mandato.’
‘Saúde é o que interessa’
Ponto para o argumento do Le Monde: a saúde do presidente é, sim, assunto a ser discutido nas páginas dos jornais. Quando se fala em exercício de poder, é de interesse público se o exercício do cargo mais importante do país está ou não ameaçado.
Entra, então, a imprensa e seu dever indispensável na divulgação das informações. O caso de Chirac foi objeto da observação atenta dos jornalistas e de especialistas. Nesse sentido, não faltaram críticas que descreviam o controle rigoroso das informações dadas pelo governo à imprensa. Na segunda-feira (5/9), o Eliseu soltou uma nota dando conta da ‘evolução muito favorável’ do quadro de Chirac. No dia seguinte, não divulgou novo comunicado, alegando que a situação não tinha mudado e que, portanto, não havia necessidade de transmitir mais informações.
Na quarta-feira (7/9), o presidente do Conselho da Ordem Médica francês, Jacques Roland, endossou a cobertura do Le Monde, dizendo ao vespertino: ‘Para mim, os comunicados não foram divulgados pelos médicos que cuidam do presidente (…). Esses comunicados, apresentados como boletins médicos, são na verdade textos preparados pelo paciente, seus próximos e seus conselheiros (…). Não nos situamos mais no contexto da comunicação médica. Estamos vendo um filtro das informações de origem política.’
Aconselhado a ‘pegar mais leve’ nas seis semanas a seguir, Chirac saiu do Val-de-Grâce na sexta-feira (9/9). Para o diário de esquerda Libération, a saída foi teatral: ‘Uma semana no hospital, e já em campanha’, escreveu o jornal na sua edição de sábado. ‘O velho ator ainda domina seu ofício. Orquestrada magistralmente, sua saída do hospital lhe permitiu fazer um número de muito charme, tentando tranqüilizar a opinião pública sobre seu estado de saúde. O objetivo do Eliseu era de emudecer a boataria e de acabar com a discussão em torno da opacidade das informações ‘médicas’ emitidas até agora’.
Na mesma linha, o Le Figaro registrou que ‘o Eliseu fez de tudo para mostrar que, apesar da hospitalização, Jacques Chirac continuava firmemente no comando e que dava continuidade aos assuntos de Estado com seus conselheiros’. Também de acordo com o diário, a internação do presidente poderá fazer de sua saúde um tema recorrente da vida política francesa, pelo menos nos próximos meses. Dado o histórico acima mencionado, a imprensa ficará bastante atenta.
Ultrapassando limites
Contudo, por mais que a importância da figura política determine a necessidade da cobertura detalhada de uma eventual doença, ainda existe a questão da fronteira entre o homem público e o paciente (privado). Até onde a imprensa pode ou deve ir quando trata do assunto?
Nos EUA, a vida particular dos homens públicos não é segredo – basta lembrar o caso Clinton ou as intervenções cirúrgicas às quais foi submetido Ronald Reagan. O dever de informar a respeito do que acontece com os dirigentes não é, no entanto, desculpa para se escarafunchar a vida alheia.
No Brasil, o caso mais evidente de cobertura exaustiva foi a doença e morte do então governador de São Paulo, Mário Covas, em 2001. É certo que Covas não fazia questão nenhuma de esconder sua doença e, tal como a imagem do papa João Paulo II tentando falar à janela do Vaticano, queria mostrar-se forte, inabalável, diante da opinião pública. Partiu do governador a iniciativa de falar abertamente sobre o câncer. Nessa intenção, no entanto, Covas exagerava (lembramos aqui o artigo de Eliane Cantanhêde publicado em 12/1/2002 na Folha de S.Paulo, por ocasião da dificuldade em falar que o governador enfrentou quando foi à posse do novo presidente da Febem):
‘Não é à toa que o apelido do teimoso, turrão, ousado e até chato Mário Covas é ‘espanhol’. Mas ele não precisa exagerar.
Quem tem visitado Covas elogia nele ‘a garra’, ‘a força’ e classificam seu estado de ânimo de ‘comovente’. Mas quem acompanha seu drama de longe tem a impressão de que Covas está se expondo mais do que qualquer um precisa, ou merece. (…)
Há certas horas em que o homem público se confunde com a pessoa física. E há outras em que, mais do que o homem público, interessa a pessoa, sua individualidade, sua dignidade.
O que os políticos e os eleitores de Covas querem é que nesta fase difícil ele não esconda informações sobre o estado de saúde e os tratamentos. Este é um dado político, público, relevante. Mas ninguém espera que ele seja um super-homem, ou algo assim.’
A cobertura do caso Covas, por outro lado, foi marcada por diversos erros, sendo o mais imperdoável a divulgação da morte do governador pelo site UOL um mês antes do ocorrido. O número excessivo de artigos publicados também evidencia o afã de driblar a concorrência, principalmente na Folha e no Estado, os jornalões mais próximos da ação. Foram mais de 400 matérias publicadas em cada jornal nos seis meses que antecederam o falecimento do governador [A eleição póstuma – morte e relações simbólicas nos campos da política e da cultura de massas, trabalho de conclusão de curso de Cynthia A. Rosa e Renate Krieger apresentado à Faculdade Cásper Líbero em 2002].
Fato é que a relevância da informação médico-política deve ser dada em dimensões apropriadas. O direito de saber a respeito dos riscos que a doença de um homem público pode trazer ao exercício do poder deve prevalecer porque é relevante. Se o governo faz segredo ou mente, é dever da imprensa insistir e investigar. Mas, lembrando a característica ‘carne-e-osso’ dos retratados na imprensa, é melhor evitar o ‘demais’.
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Jornalista, pós-graduada em Ciências da Informação e da Comunicação pela Sorbonne (Universidade Paris IV)