Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Hora da verdade. Toda a verdade.

O caso começou sob suspeição e uma semana depois está ainda mais turvo e dúbio. Apesar das duas notas emitidas pelo comando do Exército, e de uma terceira pelo ministro-chefe da Secretaria de Direitos Humanos com base nas investigações da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), estamos em meio a um formidável emaranhado de dúvidas.

Exatos 29 anos depois da divulgação da notícia de que o jornalista Vladimir Herzog suicidara-se nos cárceres do DOI-Codi de São Paulo, e da constatação imediata de que fora assassinado durante um interrogatório, continuamos envolvidos pelo velho clima de imposturas, farsas e pusilanimidade.

Ao reagir com tanto rancor à publicação pelo Correio Braziliense das fotos daquele homem nu e humilhado sem contestar que fosse Herzog, o comandante do Exército não apenas confirmou a manutenção do clima dos anos 1970 que produziu tantas barbaridades como avalizou a identidade do jornalista. Errou pelo menos duas vezes e ambas por conta da emoção. Antes de assinar aqueles disparates retirados das cartilhas da Guerra Fria, um general de quatro estrelas deveria, ao menos, mandar investigar a autenticidade da matéria e a identidade do preso fotografado.

Sua retratação, dois dias depois, longe de encerrar o assunto como desejava o ministro da Defesa, só aumentou a confusão ao lamentar a morte de Herzog (citado nominalmente). Também sem investigar, confirmou que se tratava do jornalista. Errou pelo menos uma vez e novamente premido pela emoção – o medo de ser exonerado.

Afirmação categórica

Dia seguinte, a reviravolta promovida pela agência de inteligência subordinada à presidência da República: aquele homem não era Herzog antes de morrer, mas um outro preso, igualmente despido e humilhado, talvez um sacerdote católico, canadense, felizmente vivo.

No último fim de semana outra guinada com base nas afirmações de Clarice Herzog, viúva do jornalista: algumas das fotos publicadas eram do seu marido, as demais, de outra pessoa. Significa que às trapalhadas militares juntaram-se as trapalhadas civis, desta vez na área dos Direitos Humanos, ambas produzidas pela pressa de sepultar o caso.

Se estivéssemos em guerra e nossas forças armadas necessitassem de informações precisas sobre o adversário estaríamos literalmente ferrados. Mas como estamos apenas diante de uma crise política, permitem-se tais deslizes e vexames.

As vacilações, as bravatas e os panos quentes que se filtram desta semana dominada pela incompetência mostram que a ferida continua aberta, sangra e, para ser cicatrizada, exige um tratamento de choque: a verdade. Toda a verdade.

O presidente da República demonstrou que não lhe falta energia para impor ao Exército um comportamento compatível com os desejos da sociedade ao exigir nova nota oficial do comando da Arma. Em compensação, os atropelos e o vai-e-vem dos últimos dias desvendam que a busca da verdade, além de firmeza, exige um mínimo de eficácia e o máximo de transparência.

Se a Abin afirmou tão categoricamente que o prisioneiro não era Herzog obriga-se agora a oferecer as provas que a levaram àquela constatação. Se não tem provas, mentiu. Se as esconde, está enganando o povo brasileiro. Se não mentiu, nem escondeu, é rigorosamente inepta.

Outras interrogações

Agora é impossível tergiversar. A cautela pedida pelo presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, não se justifica. É imprópria diante da avalanche de desencontradas manifestações dos últimos dias. O clima confuso só tende a agravar-se e, se persistir, deverá contaminar outras áreas. Inclusive a credibilidade do governo às vésperas de uma eleição crucial.

Não se pretende uma ‘varredura’ nos atos dos órgãos de repressão do regime militar como teme o presidente do STJ, Edison Vidigal. Se Herzog é ou não o fotografado converteu-se em questão secundária. Mas é de capital importância entender os motivos da publicação pelo Correio Braziliense, 29 anos depois, das fotos daquele homem nu e destruído.

É, no mínimo, ingênua a hipótese de casualidade ou de vingança de um ex-agente da repressão que as cedeu ou vendeu ao jornal. Se as fotos estavam com o ex-cabo do Exército desde 1997, por que só agora, sete anos depois, resolveu divulgá-las ?

Quem lhe passou a informação de que aquele homem era o jornalista? E não sendo Vladimir Herzog quem estaria interessado em armar tamanha confusão a partir de um nome que se tornou emblemático da luta contra a repressão? Por que agora e não antes?

Cada pergunta não respondida ou respondida de forma insatisfatória aciona uma cadeia de outras interrogações. O que agora está evidente é que a história toda está mal contada. E para contá-la será preciso retomar o Caso Herzog desde o início.

Oito horas depois

Para começar: não está claro por que foi anunciada com relativo espalhafato a diligência contra o grupo de jornalistas entre os quais alguns da equipe da TV Cultura na sexta-feira, 24 de outubro de 1975. Uma ‘operação’ desta natureza naqueles tempos costumava ser secreta, clandestina ou, ao menos, discreta. Neste caso foi exibida, trombeteada.

Algumas semanas antes, o jornalista Cláudio Marques, do Shopping News de São Paulo, em sua ‘Coluna Um’, já avisava numa mistura de ironias com ameaças que os jornalistas da TV Cultura seriam em breve convidados a hospedar-se nas instalações do DOI-Codi na rua Totóia. Cláudio Marques citava nomes, inclusive o de Herzog. Também tentava envolver o então secretário de Cultura do Estado, José Mindlin.

Preocupado com as ameaças, Herzog pediu a amigos comuns que solicitasse a este Observador, então responsável pela coluna ‘Jornal do Jornais’ (Folha de S.Paulo, pág. 6, aos domingos) para desmascarar o agente da repressão disfarçado em jornalista. A denúncia contra Cláudio Marques foi publicada sob o título ‘Caça às bruxas’ sem citar os nomes dos jornalistas ameaçados (12 de outubro, duas semanas antes de consumada a prisão de Herzog). No intervalo Cláudio Marques continuou seus ataques [veja abaixo a íntegra da nota].

Chama a atenção também o fato de os agentes que foram prender Herzog na sexta-feira à noite terem aceito o seu compromisso de comparecer ao DOI-Codi no sábado, às 8 horas da manhã. Uma operação contra ‘perigosos elementos subversivos’ não poderia ser conduzida de forma tão branda e ‘civilizada’.

A jornalista Marinilda Carvalho, editora-assistente deste Observatório, então presa e torturada em Brasília, revelou a insistência com que seus torturadores perguntavam pelos ‘f.d.p. comunistas da TV Cultura’ que ela sequer conhecia [leia ‘Objetivo da prisão de Herzog era atingir o governador Paulo Egydio’, na rubrica Entre Aspas desta edição].

Herzog apresentou-se no DOI-Codi conforme prometeu. Oito horas depois estava morto. Naqueles dias cerca de 90 jornalistas haviam sido presos e muitos estavam sendo barbaramente espancados.

Muitos destes jornalistas tinham nomes estrangeiros (Galé, Konder, Markun, Weis). Destes ‘estrangeiros’ só um foi assassinado.



JORNAL DOS JORNAIS
Caça às bruxas

Nota publicada na coluna ‘Jornal do Jornais’ (Folha de S.Paulo, 12/10/1975, pág. 6), treze semanas antes da prisão e morte de Vladimir Herzog.

Fazer a crítica à imprensa considerando os aspectos puramente profissionais e objetivos é uma necessidade. Faz parte da maturação do processo jornalístico e deve ser praticada por todos. Mas abandonar problemas concretos de qualidade e ética e incorporar-se ao grupo de denunciadores da infiltração ideológica nos meios de comunicação é, no mínimo, uma traição à sua própria classe hoje amordaçada, pagando por erros que não cometeu.

É o caso de dois jornalistas, um de São Paulo, outro do Rio, que desencadearam ultimamente uma ofensiva política. Aqui [São Paulo], trata-se de Cláudio Marques, colunista do Shopping News (Coluna Um, pág. 2) que há três domingos vem insistindo contra o Departamento de Jornalismo da TV Cultura, apelidada pelo colunista de TV-Vietcultura. A campanha tentou macular a própria figura do Secretário [da Cultura do Estado de São Paulo], José Mindlin.

No Rio, trata-se de Adirson de Barros, colunista da Última Hora que não apenas denuncia a ‘infiltração vermelha’ na imprensa brasileira como, inclusive, cita casos do próprio jornal.