Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Hora grave, imprensa atenta

Ao longo da semana passada, algumas notícias espantosas foram oferecidas de bandeja ao exame da imprensa:


1. A Abin, ex-SNI, virou fonte confiável;


2. O secretário de Direitos Humanos do governo Lula demonstrou confiança na Abin e usou argumento dela proveniente, que incluía a expressão "operação ilegal" (ué, tinha disso na ditadura?), para desmentir matéria legítima do Correio Braziliense, checada e rechecada, sobre fotografias do jornalista Vladimir Herzog, assassinado sob tortura nas dependências do DOI-Codi de São Paulo em 1975 – e, sim!, posto nu no DOI-Codi como tantos naquele inesquecível 1975;


3. A Câmara dos Deputados, presidida pelo partido do governo, permaneceu inerte frente à notícia de decreto de 2002 que impede a abertura dos arquivos da ditadura por 50 anos.


Para sorte do leitor, a repercussão do episódio Vladimir Herzog proveu muita informação e análise. Por um milagre que só este nosso passado aterrorizante é capaz de realizar, a concorrência foi atrás do furo do Correio Braziliense. As redações produziram matérias relevantes; colunistas veteranos, a maioria formada de repórteres duramente testados no exercício da profissão nos anos da ditadura, calaram com firmeza as vozes das cavernas que se assanharam logo depois do "desmentido" da Abin.


E como foi dito (quase) tudo o que precisava ser dito, este texto homenageia a nossa imprensa – que não faltou a seu leitor em hora grave –, toma emprestada a pena alheia e reproduz alguns trechos deste bom serviço prestado ao público:


** No domingo, o Estado de S.Paulo publicou a seguinte informação, em reportagem na qual o secretário Nilmário Miranda, dos Direitos Humanos – área em que militou por décadas antes de chegar ao governo –, reafirma com "convicção" que as fotos publicadas pelo Correio Braziliense no domingo retrasado não são do jornalista Vladimir Herzog, porque a Abin assim o garante:


"(…) O sigilo dos documentos da ditadura é mantido por um decreto editado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso a quatro dias de transmitir o cargo, em 27 de dezembro de 2002. Pelo decreto, documentos classificados como ultra-secretos devem permanecer sob segredo durante pelo menos 50 anos, com possibilidade de renovação indefinida. (…) [Sérgio Gobetti]"


Na íntegra da matéria vê-se que o ministro não apresentou prova alguma, apenas deixou claro que a Abin tem documentos guardados a sete chaves. E isso o decreto de Fernando Henrique deixa mais claro ainda. Para que um decreto fechando portas de arquivos se não há arquivos?


** A Folha de S.Paulo fez a seguinte análise, também no domingo:


"(…) Em novembro do ano passado, a Abin de Lula já havia inserido em seu ‘Boletim de Serviço Confidencial’ rasgados elogios a um coronel do Exército que se aposentou. O festejado militar condescendera, em 72, com a tortura e morte de um estudante em quartel de Goiás. O cadáver trazia um olho vazado e as palmas das mãos lanhadas. Inventou-se que cometera suicídio. Enforcara-se com um fio de persiana.


"(…) É certo que governos não podem prescindir de um serviço de ‘inteligência’. Mas a sobrevivência de uma espionagem tosca e enviesada ofende o contribuinte. De resto, passa da hora de o ex-PT brindar o país com uma legislação de acesso ao papelório da repressão. O brasileiro tem direito à sua história. E não é justo impor a Viegas [ministro da Defesa] o constrangimento de ter de inventar uma nova fogueira a cada novo vazamento. (…) [Josias de Souza]"


** Outra análise da Folha:


"(…) Já é suficientemente polêmica a declaração reiterada de Viegas – como, de resto, do governo – de que os documentos sobre a guerrilha do Araguaia, se é que existiram um dia, foram incinerados, ninguém sabe, ninguém viu. Daí a dizer que não há documento nenhum da ditadura, nem comprovação das mortes?! Isso é a morte para meio governo, que também foi preso, torturado e teve amigos assassinados pelo regime.


"As mortes existiram, os documentos existem para quem quiser e puder ver. Para entender, por exemplo, por que raios andam divulgando notas, a esta altura, enaltecendo a ditadura e defendendo os DOI-Codi da vida. [Eliane Cantanhêde]"


** Ainda a Folha de domingo:


"A par do ambiente tenso e raivoso, as fotos atribuídas a Vladimir Herzog abriram questões que não se encerram com a afirmação governamental, proveniente da Abin (ex-SNI), de que o fotografado é um padre humilhado pelo SNI. Sem o querer, a Abin evidenciou a permanência de arquivos que os militares disseram destruídos, a mobilização por localizá-los está assim estimulada, mas militares e parte do círculo presidencial são contrários. O embate é desgastante para o governo na sociedade, se o obscurantismo militar prevalecer, e com os militares, se perderem. [Janio de Freitas]"


** Mais Folha, segunda-feira, 25/10:


"(…) Vemos indícios de como são instruídos [os policiais e os militares nas escolas] quando temos de deplorar policiais facinorosos, quadrilhas de delegados federais e acintes como essa nota do Comando do Exército que louvou tortura, assassinato e ditadura. A história dessa nota insolente, atrevimento de resto inconstitucional, ainda não terminou. Primeiro, porque ainda não está esclarecido quem a redigiu, quem a despachou e quem autorizou toda a lambança.


"Rememore-se o teor da nota: a ditadura militar foi necessária e contribuiu para o progresso do país, assim como assassínios e violência covarde contra gente detida e desarmada, quando não inocente até pelos critérios dos decretos militares; como tais crimes não são mais necessários, os porões do mal foram desmontados.


"Subtexto gritante: quando o Exército decidir que é indispensável rasgar a Constituição e triturá-la em matadouros, o fará sem mais.


"Os militares que redigem e toleram essas coisas têm orgulho ou não se pejam de reafirmar um período desonroso de lama e anarquia nas Forças Armadas. Devem ser afastados, suas carreiras devem ser barradas. Os jovens devem ser formados no espírito da Constituição e as escolas militares devem ter seus currículos revistos e controlados pelos representantes do Estado democrático. [Vinicius Torres Freire]"


** No Jornal do Brasil de domingo:


"Induzido por recordações de tempos que não voltarão, Lula comportou-se com o tipo de prudência que se confunde com o medo. Um erro grave. Ele precisa, e com urgência, demitir Viegas, trocar o chefe do Exército e enquadrar todos os envolvidos no motim. Os remanescentes do serpentário têm de aprender que a era das quarteladas acabou. [Augusto Nunes]"


** E mais análise no Estadão de domingo:


"(…) O presidente do Superior Tribunal de Justiça, Edson Vidigal, não foi conceitual, formal nem politicamente fiel ao significado do termo anistia ao tratá-lo como sinônimo de ‘esquecimento’. Anistia é perdão, absolvição. Esquecimento é abandono, desdém, indiferença. O desejo de uma parcela da sociedade de esclarecer episódios ocorridos no regime militar – durante o qual vigoraram a censura e a interdição das liberdades – denota apreço pelo passado histórico do país, não pode ser confundido com revanchismo.


"Ninguém está falando em punições, de infração ou revogação da Lei de Anistia. O presente debate, provocado pela divulgação de fotos cuja autenticidade não interfere na veracidade dos fatos, diz respeito ao direito à informação cassado por leis de exceção. Na plena vigência do Estado de Direito, o elogio ao esquecimento equivale à condenação do Brasil a ser uma nação de dissimulados subtraídos de uma parte de sua memória. (…) [Dora Kramer]"


Mais precisa ser dito, é claro, e muito mais precisa ser apurado. Por exemplo, faltou nas análises a que tive acesso um espanto, um protesto enérgico contra o primeiro parágrafo da primeira resposta do Exército ao Correio. A nota que Augusto Nunes chamou de "brutal" foi destrinchada, mas o trecho passou batido:


Desde meados da década de 60 até início dos anos 70 ocorreu no Brasil um movimento subversivo, que, atuando a mando de conhecidos centros de irradiação do movimento comunista internacional, pretendia derrubar, pela força, o governo brasileiro legalmente constituído [grifo meu].


Se não fosse trágica a frase seria apenas ridícula. Quer dizer que o "governo brasileiro legalmente constituído" era o imposto pelo golpe de 1964? Essas asnices graves precisam ser combatidas o tempo todo.


Falta ainda que a imprensa exija resposta a uma contradição gritante das escusas do governo: se as fotos pertencem a arquivo específico de período específico, por que então estão lá os relatórios de presos – e mortos! – no DOI-Codi de São Paulo em setembro e outubro de 1975? Ou os relatórios são "falsos" também? Por que ninguém pergunta isso claramente ao governo?


O Correio apresentou imagem dessa tabela, outro jornal reproduziu. É atrás disso que a imprensa tem que correr. O general Newton Cruz disse à Folha: "A pior desgraça para mim foi servir no SNI". Para o país, a pior desgraça foi ter existido o SNI, é o SNI continuar existindo, como prova a primeira nota do Exército, e a sociedade não poder ser informada de suas ações brutais. Clarice Herzog tem razão ao argumentar que "anistia de mão dupla não significa jogar pás de terra sobre o passado" – por sinal, o presidente do STJ não é magistrado neste caso. Com a anistia o poder público isentou o torturador de punição. Mas o torturado – e algumas parcelas da sociedade – quer os fatos esclarecidos.


Entre alguns poréns que, dadas as dificuldades, chegam a ser irrelevantes, um destaque: na segunda-feira, o Estadão exagerou no título da matéria em que o presidente Lula diz, num baile (!) das Forças Armadas, que a questão dos arquivos deve ser tratada com o Legislativo, e não com o governo, a quem cabe cuidar do crescimento da economia. O título afirma que Lula "não quer" abrir os arquivos da repressão. É claro que compete a Lula tratar de várias outras coisas, mas a lambança do governo neste episódio já está mais do que clara, foi bobagem carregar nas tintas.


Uma palavrinha final a respeito do Globo, cuja co-irmã, a TV, anda dedicada a reescrever a história. O jornal se debruçou alguns dias – geralmente bem – sobre a matéria do Correio, mas na sexta-feira (23/10) o assunto já desaparecera da versão online. No domingo, quando os grandes diários aproveitaram para publicar suítes substanciosas, o Globo revelou-se pequeno. Se não fosse pela coluna de Elio Gaspari, a edição impressa seria território livre de tortura e ditadura, essas coisas pra lá de espinhosas em sua trajetória (na segunda-feira, o online divulgou matéria dominical do New York Times sobre o tema. Aval?)


Mas Gaspari, depois de reproduzir declarações de um comandante de masmorra registradas em seus arquivos, compareceu:


"Não há instituições nesse pedaço da tragédia. Do ponto de vista histórico há torturadores institucionalmente estimulados, orientados e protegidos pelos comandantes militares da ocasião. Defendem-se instituições chamando-se tortura de tortura e assassinato de assassinato, como faz o Exército dos Estados Unidos no Iraque".


Reescrever a história, acreditem, é mais trabalhoso do que dar as notícias do dia com fidelidade.