Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Hora da verdade, fase dois

O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) está cumprindo o seu verdadeiro papel: está despertando um debate que se imaginava impossível e sepultado. Na melhor das hipóteses, insípido e tedioso.

Não é isso que acontece. Mesmo magnetizada pelas revelações da Operação Lava Jato, a sociedade brasileira está percebendo que não pode manter-se calada e omissa, enganada pela segunda vez em 50 anos diante dos horrores produzidos pelo golpe de 1964.

Com a AP 470, Joaquim Barbosa e seus colegas no Supremo Tribunal Federal despertaram a esquecida vontade de fazer justiça. Num país amortecido por seculares impunidades materializou-se, de repente, a hipótese de punir abusos e ilícitos. As investigações judiciais ora em curso sobre os monumentais desmandos na Petrobras sugerem um desastre que, se efetivado, desabará inapelavelmente sobre a cabeça de todos, sem exceções. A Justiça deixou de ser uma figura estática e enigmática para tornar-se movimento, ação.

As lágrimas da presidente Dilma Rousseff ao receber o relatório do coordenador da CNV, Pedro Dallari, contidas e por isso mesmo mais tocantes, tiveram o dom de umedecer as consciências daqueles que não se importam com o passado. São muitos. De repente, o passado virou presente trazido pelas mesmas brutalidades e injustiças que transbordam dos jornais de hoje.

A tragédia reaparece graças também às divergências suscitadas pelo noticiário. As mesmas 4.328 páginas do relatório final, se recebidas em uníssono e aceitas por unanimidade provavelmente já estariam esquecidas. Com uma semana de vida apenas, inflamada por naturais controvérsias, tornou-se um aquecido fórum.

Motivações do terror

Na segunda-feira (15/12), em entrevista ao Estado de S.Paulo, o jurista José Paulo Cavalcanti Filho (integrante da Comissão Nacional da Verdade e o único do grupo a desaprovar a revisão da Lei de Anistia), afirmou que “História se faz com dois lados” (ver aqui).

Na Folha, no mesmo dia, outro jurista, este chileno, José Miguel Vivanco, diretor da ONG internacional Human Rights Watch (Observatório dos Direitos Humanos, em tradução livre), afirma que falta ao Brasil a coragem para superar a Lei da Anistia e para investigar as violações produzidas pela esquerda (ver aqui).

Para alguns observadores, a mídia estaria conspirando para diminuir o impacto da divulgação do relatório da CNV. Para outros, a manifestação de opiniões discrepantes comprova que só um debate livre, intenso e persistente será capaz de incorporar a busca da verdade ao nosso acervo de obrigações existenciais.

Têm prioridade os crimes praticados pelo Estado porque foram ocultados sistematicamente pela censura à imprensa. E porque também configuram uma tremenda subversão do papel do Estado, ao qual cabe defender a cidadania e não torná-la refém da paranoia de seus agentes. Violações cometidas pelo Estado antecederam as ações dos que resistiram ao golpe. Natural que tenham precedência,

Convém não esquecer que aqueles que delinquiam em nome do Estado, nas horas vagas delinquiam em benefício próprio. Sérgio Fleury foi “apagado” não porque sabia demais, mas porque se associara ao narcotráfico para satisfazer o seu vício e financiar a boa-vida.

O ex-delegado Cláudio Guerra confessou em entrevista ao programa Observatório da Imprensa que recebeu instruções para liquidar um dos seus subordinados que, além de “terroristas”, apagava desafetos de terceiros (ver “O matador arrependido”). O próprio Guerra admitiu que depois da ditadura prestou serviços “profissionais” à contravenção – tal como o coronel Paulo Malhães, cujo assassinato ainda hoje não foi esclarecido.

Debate necessário

Tudo isso precisa aflorar nas páginas dos jornais, revistas, programas de rádio e TV, blogs e grupos de discussão. À imprensa – nunca é demais relembrar – cabe a função indelegável de sacudir os apáticos, de estimular o debate e celeumas, de forçar investigações sobre a violência política durante a ditadura. É a compensação pelos anos de entorpecimento e submissão ao aparelho repressor.

A imprensa tem diante dela a oportunidade única de mostrar-se indispensável. Propriedade privada e, ao mesmo tempo, patrimônio público.

De um debate corajoso e de um trabalho investigativo responsável surgirão fatos, ideias, projetos e instrumentos que o Legislativo formatará e o Judiciário legalizará para perenizar o compromisso de “Nunca Mais”.

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