Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Ideais sepultados e apoio à censura

Pete Townshend, o guitarrista e compositor das músicas do The Who, produziu em 1965 uma canção-manifesto, My Generation, que trazia um verso fortíssimo: ‘Prefiro morrer antes de envelhecer’.

Só que ele não morreu, envelheceu. E se tornou o oposto dos jovens rebeldes de outrora, capaz de proferir verdadeiras catilinárias contra os downloads gratuitos do MP3 e até de rasgar seda para o então presidente George W. Bush: ‘Bush se esforça para dar uma vida digna ao povo dos Estados Unidos e não tenho o direito de dizer como ele deve dirigir o país.’

Daí o sarcástico cala-boca que levou de Kurt Cobain, do Nirvana: ‘Prefiro morrer antes de virar Pete Townshend.’

Como tenho duas filhas, de um e sete anos, que amo demais e quero ver crescerem, não irei ao ponto de afirmar que prefiro morrer antes de virar Carlos Heitor Cony. Não se brinca com essas coisas. Mas, a minha decepção com Cony deve equivaler à de Cobain com Townshend. Antes mesmo de aderir ao marxismo, eu já o admirava. Tive uma fase existencialista, lá pelos 14 anos, e o Cony era o escritor que, no Brasil, seguia os passos de meus ídolos Jean-Paul Sartre e Albert Camus.

Li muita coisa da sua fase despolitizada e gostei, principalmente, de Antes, o Verão e Informação ao Crucificado.

Arroubos de indignação

Mas ele mudou de postura a partir do golpe de 1964. Até então, sua matéria-prima era a impossibilidade de realização plena dos indivíduos de classe média na sociedade burguesa, focada no plano pessoal. A partir daí, ele tomou lugar na trincheira dos que lutavam diretamente contra a burguesia e seus cães de guarda, os militares. Mas, não foi uma opção tão ideológica assim, pelo menos segundo sua própria versão.

Disse que, como benjamim de uma extraordinária redação do Correio da Manhã (RJ), na qual pontificavam grandes jornalistas de esquerda como Otto Maria Carpeaux, Paulo Francis, Antonio Callado, Jânio de Freitas, Sérgio Augusto, Márcio Moreira Alves e Hermano Alves, sentia-se desobrigado de abordar temas políticos, pois havia quem o fizesse melhor do que ele. Com a quartelada, entretanto, essas figurinhas carimbadas não puderam dar sequência ao seu trabalho costumeiro, pois se tornaram alvos prioritários de prisões, intimidações e todo tipo de cerceamento.

Cony teria entrado nesse vácuo, substituindo-as na missão de denunciar a nudez do rei. Como tinha prestígio literário (seu livro de estréia, O Ventre, foi sucesso de crítica e de vendas) e reputação de apolítico, os milicos acabaram engolindo seus arroubos de indignação. Devem ter pensado que a fase seria passageira.

Apetites e ambições

Mas Cony perseverou. Depois desses artigos combativos que escreveu no pós-golpe e reuniu no livro O Ato e o Fato, faria a opção pela luta armada. Cheguei a vê-lo discursar numa manifestação estudantil aqui em São Paulo, em meados de 1968, quando afirmou que a vitória contra o arbítrio não seria conquistada nas cidades. Apontava-nos, implicitamente, o caminho da guerrilha rural. Esta guinada foi expressa em seu livro de 1967, Pessach, a Travessia. O personagem principal é uma óbvia projeção dele mesmo: um escritor de meia idade, em crise existencial, que se envolve casualmente com um grupo guerrilheiro. O que ele quer mesmo é sair dessa fria. Mas, no final, mortos os combatentes, ele tem a chance de transpor a fronteira e pôr-se a salvo. Prefere empunhar a arma de um deles e dar sequência à sua luta.

A travessia pessoal do Cony, infelizmente, não foi tão altaneira. Algumas prisões (sem maus tratos, claro, pois era vip) e o desemprego quebraram sua espinha.

Ainda fez um último grande romance, o melhor de sua carreira: Pilatos (escrito em 1972 e publicado dois anos depois). Mostra, com jeitão de pesadelo, um Brasil desumanizado em que as pessoas são movidas apenas por apetites e ambições, sem nenhum sentimento nobre.

Era, claro, o Brasil do milagre econômico.

Apologia da ditadura

E Cony deixou evidenciados seus sentimentos ao derivar o título destes versos do Samba Erudito, de Paulo Vanzolini: ‘Aí me curvei/ Ante a força dos fatos/ Lavei minhas mãos/ Como Pôncio Pilatos.’ Ou seja, se é nessa pocilga que vocês optaram por viver, voltando as costas a quem combatia por um Brasil melhor, então chafurdem à vontade. Não tenho nada a ver com isso.

O desencanto com o país e as mágoas por não encontrar companheiros de esquerda que o socorressem quando ficou na rua da amargura tiveram, como resultado, uma nova travessia, desta vez negativa, de Cony. Tornou-se, ele próprio, um homem sem ideais. Pediu emprego a Adolfo Bloch que, talvez em nome da ascendência judaica comum, o acolheu muito bem em sua editora. Mas, o diabo sempre exige algo de quem lhe vende a alma: além de cuidar de uma revista, Cony era obrigado a redigir, como ghost writer, os editoriais arquirreacionários de Bloch, fazendo apologia da ditadura. Seus colegas de redação, pelas costas, referiam-se a ele como Cony-vente.

No ano 2000, ingressou na Academia Brasileira de Letras, que decerto lhe provocaria náuseas em 1958, quando iniciou a carreira. Em 2004, embora seja profissional muito bem pago como jornalista e escritor, fez questão de obter reparação de ex-preso político. Pior: foi duplamente favorecido, passando à frente de quem estava mofando há anos na fila e recebendo uma pensão mensal (e respectiva indenização retroativa) extremamente exagerada, segundo os próprios critérios do programa. Tratamento vip, de novo!

‘Certos setores da imprensa’

E chegamos aos dias de hoje, quando não só defende fervorosamente seu colega de Academia José Sarney do clamor público pela justa punição dos delitos em que foi flagrado, como chega a apoiar a censura de jornais! Isto mesmo, está na sua coluna desta 5ª feira [20/8] na Folha de S.Paulo:

‘Acho exagerado o fervor de certos setores da imprensa em reclamar de processos ou de sentenças da Justiça, considerando violação de uma liberdade à qual todos têm direito, desde que não fira direito de terceiros.

Afinal, a imprensa não é uma vestal inatacável, acima de qualquer valor da sociedade. Ela está sujeita ao Estado de Direito, que dá liberdade a qualquer cidadão, jornalista ou não. O fato de um juiz aceitar um processo não é uma violação.’

Ou seja, um juiz ligado a José Sarney proíbe um jornal de noticiar um inquérito envolvendo falcatruas da família Sarney e a única coisa que Cony encontrou para criticar é… a solidariedade que O Estado de S. Paulo está recebendo de ‘certos setores da imprensa’!

Pensando bem, eu não preciso mesmo dizer que preferiria morrer antes de virar Carlos Heitor Cony. Por um motivo simples: nem que viva 100 anos decairei tanto.

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Jornalista e escritor, mantém blogues aqui e aqui