Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Ideário para a revolução do século 21

Em sua coluna dominical – ‘Adeus, Fidel; adeus, silêncio?’ –, o veterano jornalista Clóvis Rossi aborda as ‘reformas econômicas que transformarão a ilha caribenha’, a serem aprovadas no domingo (17/4), no 6º Congresso do Partido Comunista Cubano. Segundo ele, o corte de um quinto dos postos de trabalho no setor público e o estímulo à criação de um setor privado capaz de absorver tais trabalhadores implicarão a abertura do regime cubano: ‘Às reformas econômicas que serão lançadas hoje seguir-se-á a prazo relativamente curto a reforma política.’


Ele especula que a construção do porto de Mariel, financiada pelo Brasil, ‘só tem sentido se for para exportar para os Estados Unidos’. E, como queria demonstrar, conclui: ‘Se é assim, implica o restabelecimento de relações, com todo o cortejo de consequências.’ Se os palpites de Clóvis Rossi estiverem certos, preparemo-nos para a grita ensurdecedora da imprensa burguesa, festejando a capitulação da pequenina ilha asfixiada pelo embargo comercial estadunidense.


E vamos, sim, dar nossa resposta a esta zombaria do jornalista:



‘Na hora em que a esquerda continua sob os escombros do Muro de Berlim, começa a cair mais um muro. Talvez seja a hora de construir algo com tantos tijolos.’


Já faz quase um século que os movimentos revolucionários desviaram por atalho que acabou conduzindo a um beco sem saída. O desvio foi decidido às vésperas da revolução soviética, quando o partido bolchevique discutiu dramaticamente se valia a pena tomar-se o poder num país atrasado, contrariando duas premissas marxistas: a da revolução internacional e a da construção do socialismo a partir das nações economicamente mais pujantes (e não o contrário!). Prevaleceu o argumento de que, embora a Rússia não estivesse pronta para o socialismo, serviria como um estopim da revolução mundial, começando pela revolução alemã, prevista para questão de meses. Então, o atraso econômico russo seria contrabalançado pela prosperidade alemã; juntas, efetuariam uma transição mais suave para o socialismo.


O destino das revoluções


Deu tudo errado. A reação venceu na Alemanha, a nova República soviética ficou isolada e, após rechaçar bravamente as tropas estrangeiras que tentaram restabelecer o regime antigo, viu-se obrigada a erguer uma economia moderna a partir do nada. Quando o ardor revolucionário das massas arrefeceu – não dura indefinidamente, em meio à penúria –, a mobilização de esforços para superação do atraso econômico acabou se dando por meio da ditadura e do culto à personalidade. A Alemanha nazista era o espantalho que impunha urgência: mais dia, menos dia haveria o grande confronto e a URSS precisava estar preparada. O stalinismo foi engendrado em circunstâncias dramáticas.


A República soviética acabou salvando o mundo do nazismo – foi ela que quebrou as pernas de Hitler, sem dúvida! –, mas perdeu sua alma: já não eram os trabalhadores que estavam no poder, mas sim, uma odiosa nomenklatura. Concretizara-se a profecia sinistra de Trotsky: primeiro, o partido substitui o proletariado; depois, o Comitê Central substitui o partido; finalmente, um tirano substitui o Comitê Central.


Com uma ou outra nuance, foi este o destino das revoluções que tentaram edificar o socialismo num só país: ficaram isoladas, tornaram-se autoritárias e não tiveram pujança econômica para competir com o mundo capitalista, acabando por sucumbir ou por se tornarem modelos híbridos (como o chinês, que mescla capitalismo na economia com stalinismo na política).


Edifício sólido


Agora, só nos resta voltarmos ao princípio de tudo: Marx. Reassumirmos a tarefa de engendrar uma onda revolucionária que varrerá o mundo. Esquecermos a heresia de solapar o capitalismo a partir dos seus elos mais fracos, pois o velho barbudo estava certíssimo: as nações economicamente mais poderosas é que determinam a direção para a qual as demais seguirão, e não o contrário. Isto, claro, se tivermos como meta a condução da humanidade a um estágio superior de civilização. Pois o cerco das nações prósperas pelos rústicos e atrasados já vingou uma vez, quando Roma sucumbiu aos bárbaros… e o resultado foi um milênio de trevas.


Se, pelo contrário, quisermos cumprir as promessas originais do marxismo, as condições hoje são bem mais propícias do que um século atrás: ‘…Só unidos e solidários os homens conseguirão sobreviver…’


O capitalismo já cumpriu seu papel histórico no desenvolvimento das forças produtivas e está tendo sobrevida cada vez mais parasitária, perniciosa e destrutiva – tanto que mantém a parcela pobre da humanidade sob o jugo da necessidade quando já estão criadas todas as premissas para o reino da liberdade, e o 1º mundo sob o jugo da competitividade obsessiva, estressante e neurótica, quando já estão criadas todas as premissas para uma existência fraternal, harmoniosa e criativa; os meios de comunicação que ele desenvolveu, como a internet, facilitam a disseminação e coordenação dos movimentos revolucionários em escala mundial, de forma que um novo 1968, por exemplo, hoje seria muito mais abrangente (está longe de ser utópica, agora, a possibilidade de uma onda revolucionária varrer o mundo); a necessidade de adotarmos como prioridade máxima a colaboração dos homens para promover o bem comum, em lugar da ganância e da busca de diferenciação e privilégio, será dramatizada pelas consequências das alterações climáticas e da má gestão dos recursos imprescindíveis à vida humana, gerando crises tão agudas que só unidos e solidários eles conseguirão sobreviver.


Nem preciso dizer que a forte componente libertária original do marxismo tem de ser reassumida, pois os melhores seres humanos, aqueles dos quais precisamos, jamais nos acompanharão de outra forma (esta é uma das conclusões mais óbvias a serem tiradas dos acontecimentos das últimas décadas). A bandeira da liberdade deve ser empunhada de novo pelos que realmente a podem concretizar, não pelos que só têm a oferecer um cativeiro com as grades introjetadas, pois a indústria cultural as martela dia e noite na cabeça dos videotas.


É este o edifício sólido que podemos começar a construir com os tijolos dos muros tombados.

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Jornalista e escritor – htpp://naufrago-da-utopia.blogspot.com