A revolta popular no Egito não pegou de surpresa apenas os Estados Unidos e países europeus, velhos aliados de Hosni Mubarak e de outras ditaduras árabes. A imprensa brasileira, eternamente influenciada por Washington e pelos jornais americanos, foi igualmente surpreendida. Até então, quase todo o noticiário internacional e boa parte do de economia eram voltados para países como Bolívia, Equador, Venezuela, Irã. De repente, os gritos de revolta, primeiro na Tunísia, depois nas ruas do Cairo, invadiram os aquários das nossas redações.
Nossos editores, principalmente os de internacional, continuam agindo como no tempo em que se vivia, ao mesmo tempo, guerra fria e ditadura militar. Todo cuidado era pouco. Ter uma visão crítica da política americana e de outras potências ocidentais podia parecer um apoio ao ‘outro lado’. De repente, leitores, ouvintes, telespectadores ficaram sabendo que o governo egípcio recebe dos Estados Unidos uma ajuda anual de quase US$ 2 bilhões – inferior apenas àquela recebida por Israel, outro aliado problemático de Washington. Os leitores ficaram sabendo também das lamentáveis condições de vida do povo, com altas taxas de desemprego, pobreza, desigualdade social. E o que acontecerá nas prisões egípcias, sauditas? Pouco se falou sobre isso, até agora.
Pena de morte é sempre execrável
O governo americano obviamente ficou em má situação, mas os correspondentes de nossas TVs nos Estados Unidos falam ‘da preocupação de Obama com a democracia’ e coisas desse tipo, sem nenhum comentário crítico sobre a velha cumplicidade de Washington com as ditaduras árabes. A secretária de Estado americana Hillary Clinton tenta se equilibrar no salto alto e alguns jornais brasileiros parecem fazer o mesmo: da noite para o dia, passaram a chamar Hosni Mubarak de ditador, não mais de presidente, com apenas 30 anos de atraso. E a exigir sua saída imediata e a realização de eleições livres. Pensam que o leitor é idiota. Entraram em cena também os famosos ‘analistas’ do óbvio. Até mesmo alguns comentaristas de economia descobriram, finalmente, as mazelas do povo egípcio. Com multidões nas ruas e jornalistas sendo presos e deportados, é hora de chutar o cachorro agonizante.
Em 2008 aconteceu algo parecido, quando explodiu nos Estados Unidos a crise das hipotecas, considerada a pior desde a Grande Depressão de 1929. A bolha do mercado imobiliário já vinha crescendo há alguns anos, mas somente depois de instalada a crise surgiram os analistas, agora para fazer previsões catastróficas sobre o futuro do Brasil. Alguns pareciam mesmo torcer pelo pior. Felizmente, quebraram a cara.
Esse tipo de atitude, essa falta de independência, leva a imprensa brasileira a não informar o público corretamente e a desrespeitar regras fundamentais do bom jornalismo: ouvir os dois lados, ter olhar crítico. Faltou isso também no episódio da condenação à morte por apedrejamento da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani. Pena de morte, seja onde ou por que motivo for, é execrável. Os Estados Unidos têm nos seus corredores da morte 52 mulheres. Uma delas, Teresa Lewis, foi executada em setembro do ano passado no estado da Virgínia, por planejar o assassinato do marido e do enteado para receber um seguro. Milhares de pedidos de indultos foram recusados pelo governador da Virgínia, Robert McDonnell. Profissionais da área de saúde inundaram de e-mails a caixa postal do governador, alertando que Teresa era deficiente mental. De nada adiantou.
A imprensa esqueceu que Bush existe
Que moral tem um governo que executa mulheres para criticar outro que faz o mesmo? E nossa imprensa, por que não assume diante disso um posicionamento crítico, como no caso de Sakineh? E em países como a Arábia Saudita, onde a mulher sofre aquilo que oficialmente já sabemos, o que acontecerá longe dos olhos da imprensa?
De todos os casos de omissão da imprensa brasileira, o pior certamente diz respeito ao ex-presidente George W. Bush e ao ex-primeiro-ministro inglês Tony Blair. Os dois são criminosos de guerra. Com base numa mentira, lideraram a invasão e destruição do Iraque. Despejaram toneladas de bombas, mataram, feriram e mutilaram milhares de civis. Até hoje, oito anos da invasão da chamada coalizão comandada pelos Estados Unidos, o país vive em clima de quase guerra civil. A ONU, onde as grandes potências dão as cartas, lavou as mãos. Exatamente como tem feito há décadas diante da atitude de Israel que, com a cumplicidade dos Estados Unidos, ocupa terras dos palestinos e atropela decisões das Nações Unidas.
Enquanto isso, o criminoso de guerra Bush engorda sua poupança dando palestras para empresários e em universidades, no mundo inteiro. Quem já viu, na grande imprensa, uma única crônica protestando contra essa impunidade, lembrando que George W. Bush é criminoso de guerra e deveria ser julgado por seus atos? Em setembro último, ele esteve no Brasil para falar a um grupo de empresários. Certamente voltou para casa com muito dinheiro. Cercado de seguranças, não deu entrevistas nem permitiu fotos. Talvez nem precisasse. Nossa imprensa simplesmente esqueceu que ele existe e todos os crimes que cometeu contra o povo iraquiano.
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Jornalista