Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Imprensa deve inteligência e argúcia aos leitores

Ainda sobre os efeitos do terremoto e da tsunami que infelicitaram o povo japonês nos últimos dias, volto a pensar sobre a maneira incendiária encontrada por 2011 para marcar sua passagem nas calendas da História.

14 de janeiro – manifestações públicas de protesto contra o governo, sempre com milhares de participantes em praças públicas, conseguiram varrer do mapa o ditador tunisiano Zine El Abidine Ben Ali.

11 de fevereiro – seguindo o mesmo roteiro, os ventos do desespero que sopraram sobre a população egípcia e lotaram por dias e noites seguidos a ora famosa Praça Tahrir, no Cairo, desalojaram do poder o ditador egípcio Hosni Mubarak.

12 a 18 de fevereiro – como uma atração marcada por absoluto sucesso de público, o fato relevante é que o anseio por mudanças radicais na vida dos países islâmicos parece ser altamente contagioso: com a destituição de Ben Ali e Hosni Mubarak, as massas da Líbia, Bahrein, Iêmen, Marrocos e também do Irã estão indo às ruas, enfrentando ditaduras e monarquias.

Os déspotas tentam se segurar como podem: oferecem dobrar o salário mínimo da população, atendem reivindicações históricas por menor jornada de trabalho, oferecem abonos financeiros atraentes às classes mais desassistidas. E não ficam por aí. Apresentam propostas de reformas constitucionais. Ou seja, querem liderar o processo de transição de si mesmos, colocando no poder, obviamente, seus velhos companheiros de ditaduras, também alcunhados pelas multidões que querem vê-los longe como nada mais que cúmplices de crimes brutais contra as populações civis.

Sociedades em transformação

Nesse cenário de apocalipse sem ensaio prévio observamos emissoras de tevê se desdobrando para levar, instante a instante, flagrantes de sociedades em vias de ruptura, civis transformados do dia para a noite em milicianos, engrossando as fileiras de contingentes paramilitares e dispostos a enfrentar – como é exatamente o caso da Líbia de Muammar Kadaffi – pesada artilharia aérea. É uma luta por demais desigual, como se o povo estivesse cansado de atuar como aquele boneco que se senta nas pernas do experiente ventríloquo, se revoltasse contra este e passasse a criar seu próprio número, articular sua própria fala, incitar seu próprio público contra seu mestre de tantos anos e de tantos desatinos.

Está claro que, por maior e mais intensa que seja a brutal repressão de governos desnorteados, longe de diminuir o ânimo e o entusiasmo das massas protestantes, atiçam o sagrado fogo do entusiasmo por mudanças para hoje, melhor, para ontem pela manhã. Uma coisa é certa: a paisagem do Cairo e de Trípoli jamais será a mesma e outras paisagens começam a se delinear no horizonte. Paisagens que não incluem apenas países pequenos e no mais das vezes periféricos – como o Bahrein, o Iêmen, o Marrocos – e que passam a incluir a Teerã do sanguinário Mahmud Ahmadnijad.

Desvantagem dos jornais

O papel da internet não poderá ser superestimado nesse cenário de mutação acelerada que varre essas nações, em geral de maioria islâmica e que visam derrubar governos marcados pelo autoritarismo (e voluntarismo), corrupção desmesurada e ineficiência patente. Os jornais impressos largam em completa desvantagem, pois como já era sabido e esperado, o nascedouro dos furos jornalísticos e o impacto da realidade em movimento têm como endereço certo as transmissões por satélite para as emissoras de televisão, as imagens que trafegam por infovias a bordo de câmaras de celulares, de vídeos modestos (mas tão eficientes) feitos por pessoas comuns, simples, do povo mesmo que se propagam no espaço cibernético como aquela praga de gafanhotos imortalizada no clássico de 1956 de Cecil B. DeMile ‘Os Dez Mandamentos’. E são esses gafanhotos que inundam as redações dos jornais e das revistas transformando experientes jornalistas em improvisados historiadores de roteiros de realidades envelhecidas ao longo de longevas 24 ou 48 horas.

As multidões, embora inconscientes do apoio planetário maciço que recebem segundo a segundo, aos poucos percebem que contam com milhões de militantes entrincheirados em lugares não-geográficos e que têm como bandeiras nomes até um pouco exóticos como twitter, orkut, facebook, YouTube. Os meios de comunicação em estonteante velocidade formam atualmente o mais impressionante ativo militar em atividade no mundo. E sua bandeira, por mais que se tente delas se apropriar governos estáveis e ditos democráticos, não pode ser outra que Justiça, Liberdade, Dignidade. E são exatamente por serem estas as bandeiras que massas da humanidade cavalgam por cima de códigos nacionais, credos religiosos, padrões lingüísticos, formações étnico-raciais e classes sociais.

Falta análise

Após quase três meses de férias autoconcedidas nesse indispensável Observatório da Imprensa resta-me observar que os eventos aqui abordados possam ser replicados com igual intensidade em nossa maneira de registrar a realidade jornalisticamente: há que se abrir amplas clareiras para análises mais profundas, percepções mais aguçadas, entendimento mais abrangente de que o que infelicita a parte infelicita o todo. Onde quero chegar? Ora, sinto vazios oceânicos na cobertura dos meios escritos. Existe apenas repetição do que foi relatado na tevê, no rádio, na internet. É como se o papel da imprensa escrita fosse o de legendar o que nossos olhos vêem, captam, percebem. E certamente não há nada mais ridículo e patético que isto. O papel da imprensa tradicional, a escrita por excelência, é o de nos oferecer alentadas análises, textos bem redigidos que dentre tantos tópicos pendentes de abordagem séria e serena, respondam a questões basilares como estas que enuncio a seguir:

Quais as implicações econômicas para o mundo advindas com a queda de Mubarak no Egito, Ben Ali na Tunísia e de uma aguardada queda de Kadaffi na Líbia? Quais os cenários possíveis quanto ao escoamento do petróleo dessa região para o Ocidente?

Quais as implicações econômicas para o Brasil? Qual o volume de nossas exportações de bens e serviços para estes três países? Quais as empresas brasileiras que desde logo devem estar com ‘as barbas de molho’? E no reino da Petrobras, alguma turbulência séria poderá ocorrer? Para a Petrobrás, os espaços – estratégicos e comerciais – serão enxugados ou… ampliados?

Quais as implicações econômicas para os Estados Unidos e para o continente europeu que ainda sofrem os efeitos da crise econômica de 2008? Terão estas nações cacife suficiente para colocar no poder quem lhes possa assegurar a manutenção de seu dourado status quo pré-2011?

Quais as implicações político-religiosas para o Irã em sua longa queda de braço com o Ocidente? Conseguirá exportar sua ‘revolução islâmica’? Conseguirá colocar de pé seus próceres na condução dos três países? Dedicará atenção prioritária à situação política no Egito? Será o Irã engolfado nos mesmos ‘ventos vivificadores’?

Quais as implicações político-religiosas para Israel? Que sombras começam a se formar sobre suas fronteiras? Como as lideranças políticas de Israel avaliam o movimento de peças em um tabuleiro de xadrez tão ao alcance de suas mãos e de suas mentes?

Como a diplomacia brasileira tem agido e reagido em cada situação? O que tem sido feito para manter em seguranças contingentes de brasileiros que residem nesses países recém-conflagrados? A atuação do chanceler Antonio Patriota em face dos conflitos tem semelhanças (ou dessemelhanças) com seu antecessor no cargo Celso Amorim?

Como se pode avaliar o papel desempenhado pela Organização das Nações Unidas para a manutenção da paz e da segurança internacional ante a mudança de poder nesses países? Tem estado a reboque dos Estados Unidos? Da União Européia? Estará empenhada em defender os melhores interesses do concerto das nações que assinaram sua Carta de Fundação em 1948 ou abdicará de seu papel em função de interesses nacionais da meia dúzia de países-membros de seu Conselho de Segurança?

Mais que encher suas páginas com gráficos e infográficos, com animações e cronologias diárias e semanais, mais que preencher burocraticamente boxes com o gancho sempre pouco afiado do ‘entenda o caso’, a imprensa escrita brasileira fica a dever pesadas doses de ração de inteligência e argúcia para seus milhares de leitores, e caso não nos entregue a ração pode começar a escrever seu triste epitáfio: Aqui jazem nossos jornais e revistas. Causa mortis: Incapacidade atávica para ler no presente a realidade do futuro.

******

Mestre em Comunicação pela UnB e escritor