Quem matou Saulo? A mídia teria preferido discutir os sensacionais desdobramentos da telenovela Passione, da Rede Globo. Seria mais empolgante, mais proveitoso, mais divertido, menos complicado. Mas o calendário impunha a pauta eleitoral e os gênios do jornalismo sacaram do coldre a única arma que sabem manejar – embora canhestramente: o denuncismo.
Se nossa mídia fosse mais diversificada e, portanto, mais capacitada para exercer uma vigilância permanente sobre os demais poderes, o presidente Lula teria sido contido tão logo iniciou a escalada ao longo da qual não apenas maculou a liturgia do cargo, como feriu valores democráticos justamente quando se processa a alternância do poder.
O pronunciamento do presidente Lula minutos depois de votar na manhã de domingo (31/10), diante das câmeras e microfones do país inteiro, é uma síntese das infrações cometidas nos últimos sete meses e que só uma imprensa firme, serena e competente teria condições de coibir se soubesse fazer-se respeitar. Encerrada formalmente a campanha eleitoral, as urnas ainda abertas, o presidente da República confrontou arrogantemente a legislação eleitoral para atacar o candidato adversário e, ainda por cima, responsabilizá-lo pela inusitada intervenção da Santa Sé na soberania brasileira.
Quem convidou o papa Bento 16 para imiscuir-se na vida de um Estado pretensamente laico como o nosso foi o próprio presidente Lula quando, em 2008, acompanhado por sua candidata, foi ao Vaticano para celebrar uma concordata que, graças a um conluio com a grande imprensa, manteve-se secreta por alguns meses para facilitar a sua tramitação pelo Legislativo.
Rabo preso
Uma imprensa que aceita essas cumplicidades casuais (ou sazonais) torna-se naturalmente vulnerável, desfibrada, perde a credibilidade e, quando tenta se afirmar, só consegue recorrer ao barulho das acusações de corrupção. Algumas foram consistentes – caso da indústria de favorecimentos operada pela ex-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra. A maioria das revelações, porém, é incompleta, fruto de investigações apressadas, às vezes irresponsáveis.
A fiscalização da imprensa não pode ser exercida de forma espasmódica e seletiva. Quando um jornal como a Folha de S.Paulo hospeda e protege em suas colunas uma figura como o senador José Sarney – encarnação das aberrações produzidas pela concentração do poder político-econômico-mediático – perde a legitimidade para defender a liberdade de expressão.
Uma imprensa respeitada não pode ter o rabo preso nas malhas de qualquer poder. Uma imprensa respeitada precisa apresentar-se com seriedade e gravidade. Ao conviver com tantas banalidades, desperdiça suas convicções.
Vida política
O mito Lula foi criado e mantido pela imprensa desde quando o líder sindical do ABC paulista surgiu no noticiário, na segunda metade dos anos 1970. A imprensa estava certa no seu afã de ativar a derrocada do regime militar e reativar a vida política. Mas para preservar este mito Lula, sobretudo depois de alçá-lo à Presidência da República, a imprensa deveria ter sido mais severa quando seus arroubos se converteram em transgressões, justo no momento em que lhe cabia presidir com isenção a escolha do seu sucessor. Desta pusilanimidade da imprensa resultou o mais virulento processo eleitoral desde a redemocratização.
A vida política e institucional de um país não pode ser balizada pela dramaturgia das séries televisivas. O ‘vale tudo’ que precisa ser evitado está muito além da dúvida sobre quem matou Odete Roitman.
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Em Tempo [incluído às 15h15 de 1/11]
Na sua desastrada despedida dos palanques, o presidente Lula investiu contra o Ministério Público Eleitoral que está questionado a vitória do candidato à Câmara dos Deputados Tiririca, porque seria analfabeto. Esta interferência do chefe do Executivo num caso sub judice é impertinente e ilegítima, quaisquer que sejam as razões do político Lula para defender um candidato. O caso é mais grave porque com este prejulgamento o presidente da República em exercício revela quem indicará para preencher a 11ª vaga no colegiado do Supremo Tribunal Federal, ao qual certamente será encaminhado o caso.
Questão de gênero
Ao apresentar Dilma Rousseff, domingo (31/10) à noite, na sua primeira manifestação como presidente eleita, o presidente do PT José Eduardo Dutra qualificou-a como presidenta. Não está errado, o substantivo pode ser usado das duas formas. Foi uma opção estratégica e política, porque a candidata foi eleita apoiada por um presidente com um índice de popularidade jamais alcançado. A questão de gênero entrou marginalmente no debate porque os marqueteiros a consideraram perigosa. Por isso recomendaram ao PT que desta vez deixassem a bandeira feminista em segundo plano. Compreensível: na plataforma das reivindicações feministas em todo o mundo a descriminalização do aborto é prioritária. O ex-senador Dutra, grande especialista em petróleo, não sabe que as feministas defendem a igualdade de tratamento e ficam furiosas quando Cecília Meireles é chamada de poetisa. Para elas, não deve haver diferença – Cecília Meireles é poeta. Tal como Carlos Drummond de Andrade.