O jornalista Eugênio Bucci vê as medidas judiciais de censura no País como uma ameaça à própria essência da imprensa na democracia. ‘A democracia precisa da imprensa porque esta publica livremente informações e opiniões. Se não é assim, a imprensa deixa de exercer sua função.’ Para o autor de A imprensa e o dever da liberdade, ‘não faz sentido o Judiciário se tornar o editor final do que pode ou não ser publicado’.
Desde o dia 31 de julho, o Estado de S.Paulo está proibido, por decisão do desembargador Dácio Vieira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, de publicar informações sobre investigação da Polícia Federal que atingiu o empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP). A proibição foi baseada no argumento de que a investigação está coberta por sigilo judicial. ‘A imprensa existe justamente para publicar o que outros consideram segredos’, avalia Bucci.
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Dentre os países democráticos, que consagram a liberdade de imprensa em suas Constituições, o senhor sabe de algum outro onde um juiz pode impedir a divulgação de determinada informação?
Eugênio Bucci – Não estudo esses casos fora do Brasil, mas eu não tenho notícia de um procedimento desse tipo. Não faz sentido o Poder Judiciário se tornar o editor final do que pode ou não ser publicado. A imprensa só funciona porque é livre para publicar o que julga de interesse público segundo seu próprio discernimento, seus próprios métodos e sua autoridade natural. É claro que, depois, ela responderá pelo que publicar. Mas o editor, ou seja, aquele que dá a palavra final, publique-se ou não, não deve estar abrigado no interior do Estado.
A justificativa dada pelos defensores das medidas judiciais de censura é a necessidade de evitar supostos abusos. Mas há leis para punir quem os comete. A própria existência dessa legislação já não funciona como freio a eventuais abusos da imprensa?
E.B. – Uma democracia é regida por leis, e a imprensa não está à margem da lei. Mas não precisa de alguém que tome conta dela. Por essa lógica de que é preciso evitar abusos, a imprensa precisaria de uma espécie de pajem, alguém que a ajudasse a não cometer excessos. Se isso prevalecesse, a instituição da imprensa desapareceria, porque sua autonomia resultaria inteiramente revogada. A lógica contida nas decisões judiciais nos levaria a acreditar que a imprensa, em algumas situações, teria de perguntar a uma autoridade se aquilo pode ou não ser publicado. Isso fere de morte a razão pela qual a democracia precisa da imprensa. A democracia precisa da imprensa porque esta publica livremente informações e opiniões.
Como resolver o conflito entre direito à informação e direito à privacidade, ambos com abrigo na Constituição?
E.B. – O conflito entre os direitos à informação e à privacidade é permanentemente posto. Ele não existe apenas quando um processo corre em segredo de Justiça. Existe em praticamente todas as apurações de maior vulto. Cabe aos jornalistas fazer os julgamentos e as avaliações necessárias para proteger o direito à privacidade, para não agredir pessoas, para não destroçar reputações. Quando a imprensa erra, algumas vezes resulta prejudicada a imagem de uma pessoa. E isso deve ser corrigido, deve ser reparado. Mas, num aprendizado democrático, os mecanismos que os jornalistas adotam para proteger a privacidade vão evoluindo, se aperfeiçoando, e a sociedade ganha com isso. Não é uma autoridade judicial que irá dizer quando e como um jornalista deve proteger a privacidade de quem quer que seja.
Quem tem de zelar pelo chamado sigilo de Justiça, o poder público ou a imprensa?
E.B. – O compromisso da imprensa é com a sociedade, com o direito à informação do cidadão. De posse de uma informação de interesse público, o dever da imprensa é publicá-la. Da maneira mais correta, mais serena, mais precisa, mais respeitosa possível, mas publicá-la. É falta de razoabilidade supor que, a partir de agora, o compromisso da imprensa seria com os sigilos de Estado. Existem investigações sigilosas de diversas naturezas, e o compromisso com a preservação desse sigilo é dos agentes envolvidos no seu processamento. A imprensa existe justamente para publicar o que outros consideram segredos, segredos atrás dos quais podem se esconder ações que conspiram contra o interesse público. Imagine o que seria do jornalista, se ele não pudesse mais investigar e publicar segredos. O que é uma notícia senão um segredo revelado?
Como o senhor analisa o fato de, na maioria dos casos, a censura judicial ser determinada a pedido de políticos ou pessoas ligadas a eles?
E.B. – Não disponho dessa estatística, mas ela não me surpreende. Estamos em uma situação em que um processo com sigilo de Justiça pode se converter em uma senha para que alguns se vejam protegidos da função investigativa da imprensa. Portanto seria uma vantagem, um privilégio, perante a imprensa, que alguém se protegesse sob o manto do sigilo de Justiça. É sintomático que quem reivindique essa condição sejam personagens que frequentemente entram em choque com a opinião pública ou com a expectativa de conduta transparente e limpa que a sociedade alimenta em relação a seus representantes.
O que o senhor achou dos argumentos expressos na decisão do desembargador Dácio Vieira a respeito do Estado?
E.B. – Ele estabelece uma vedação à publicação de qualquer informação relacionada àquele que entrou com o pedido. Estabeleceu-se assim uma espécie de blindagem judicial. E me assusta a possibilidade de generalização dessa atitude. Vamos imaginar um país em que que seja proibida qualquer informação sobre qualquer pessoa que esteja sob investigação. O que seria desse país?
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Eugênio Bucci é formado em Direito e Comunicação Social pela Universidade de São Paulo. Escreveu, entre outros livros, Em Brasília, 19 horas, obra na qual relata sua experiência como presidente da Radiobrás no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É membro do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta.