Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Imprensa ganha o pão vendendo as migalhas

Algumas coisas seguem sem sentido no fenômeno que vem ocorrendo na mídia: por que, em meio a milhares de casos similares ou mesmo piores do que o caso Isabella, a mídia escolheu esse para pegar para Cristo? Sigo questionando com meus próprios botões. O que define um caso pinçado como sendo o caso perfeito para alimentar os vampiros da semana? Quem é o ‘Batman’ que puxa o caso e faz com que os ‘Robins’ do jornalismo voem no pescoço dele?

Levanto ainda a hipótese ‘X’, de um caso, digamos, similar, para tentar entender.

Três crianças, sentadas no banco de trás de um carro, brigam. Coisas de crianças! A madrasta, enciumada com a filha do primeiro casamento do marido, lava as mãos, e põe fogo na língua dizendo ao pai da menina: ‘Você não vai dar um corretivo na sua filha?’

O pai, que já está sem paciência, sentindo-se atormentado com a gritaria das crianças, que acabara de passar pelo estresse do trânsito de São Paulo e outros tantos ‘arroubos’ da vida cotidiana, perde a noção do que seja paciência.

Chegando ao lar do casal, o pai dá uns tapas na menina, que, digamos, passam da conta. Descarrega a raiva na criança. Pega ela pelo pescoço. Asfixia a menina para que ela se cale e pare de chorar.

Um triste acidente

Levemos em consideração os seguintes elementos também: o pai, óbvio, é um homem. Homens estressados e irritados podem ter a força de 100 cavalos. Ou seja, um tapa de um homem em uma criança não é o mesmo que o tapa de um homem em outro homem. Quem é pai bem sabe também que crianças podem tirar qualquer um do sério; até o mais pacato dos homens. Por mais amoroso que seja, qual pai pode afirmar que nunca carregou a mão numa criança, em um dia de estresse?

Mas, de fato, o pai desta hipótese parece ter exagerado na dose. Quando percebe, já fez o que não devia e talvez o que não pretendia. Ele ‘deu tanto’ na menina que, em verdade, ela desmaiou. O pai acha, então, que matou a filha. Em total desespero, não percebe que ela poderia estar apenas desmaiada.

Com a consciência pesada, ‘a voz’ (aquela do instinto animal e de sobrevivência, que todos nós temos), repete e pressiona dentro da cabeça do pai: ‘ Você precisa se livrar do corpo e, conseqüentemente, da culpa‘.

Em momento de desatino, em completo desespero, o pai corta a rede de proteção de uma das janelas do lar e joga a menina do ‘y’ andar. A idéia era a de fazer com que parecesse que tudo aquilo não tivesse passado de um triste acidente.

O destaque da semana

O jogar do corpo foi, assim, instintivo; o que o pai acabara de jogar pela janela foi o sentimento de culpa. Na cabeça dele, não era a filha que ele estava jogando pela janela; era, sim, a culpa que naquele momento afligia a consciência de pai.

Não que a atitude dele seja abonável e/ou perdoável. Mas é compreensível, se olhamos com olhos isentos. Consideremos, o pai é humano. Passível, portanto, de cometer os erros mais extremos; e até crimes eventuais numa hora de intensa ira, como qualquer um de nós, pobres mortais.

Acontecem casos assim e piores todos os dias. Acontecem nos filmes, acontecem na vida, podem acontecer até na casa da nossa vizinha. Casos como o hipoteticamente citado acima podem ser encontrados também na jurisprudência (realidade) ou em romances policiais (ficção). Acontecem inclusive fatos reais e bem mais bizarros com crianças, todos os dias, e ninguém da imprensa os elege como sendo ‘o caso’ a ser destacado na semana.

O mais podre dos estilos

Por que, então, o caso Isabella está sendo tão explorado?, sigo questionando. O que foi, realmente que a imprensa viu de tão especial no caso?

Refletindo, ainda, não vejo muita diferença entre o pai citado na hipótese ‘X’ – o que teria jogado a filha pela janela em momento de desatino e desespero – e a imprensa que suga o caso da menina Isabella para obter algo que vale muito menos do que a vida dela.

E, por um instante, a sensação é aquela de que a vida de seres humanos é vista na imprensa como nada mais, nada menos, do que algo meramente comercial. Meus botões seguem indagando: ‘E aí? Quer pagar e vai ganhar quanto por alguns pontos a mais no ibope, senhora imprensa?’

Percebo ainda que, com todo respeito, o pai da hipótese ‘X’ pode até ter matado a filha, mas é a imprensa que no caso Isabella está matando a vida de todos que pertencem às famílias ou que de alguma forma estão com elas envolvidas.

Aproveitando que no texto aponto um dedo para lá, enquanto outros três apontam para cá, assumo também a minha culpa, pois nos parágrafos acima, acabei de fazer exatamente aquilo que critico no restante da imprensa. Acabei de julgar, linchar e condenar , ainda que hipoteticamente, o pai retratado no caso ‘X’. Assim o fiz baseada em suposições ainda infundadas e no mais podre de todos os estilos: o sensacionalismo.

O mais perfeito inferno

Como vocês podem ver, qualquer um pode tentar acertar e por instinto acabar errando. Mas, por questão de reflexão, é preciso entender que o que acabei de fazer não é digno de ser chamado de Justiça – e muito menos de jornalismo.

Observando, contudo, ‘outras nobres motivações’, faço à ‘senhora imprensa’ um apelo: aguarde a conclusão das investigações. Dê um tempo na atitude sanguinária, de arrancar mais sofrimento e de causar mais dor às pessoas – sejam elas, o público, os amigos, os parentes ou simplesmente os pais.

Menos. Bem menos, ‘senhora imprensa’. Tempo ao tempo. Uns dias de silêncio, em respeito à alma da menina. E tempo ao tempo para que a Justiça seja feita por quem de direito, e não por meio das mãos de jornalistas.

Por fim, diante do meu próprio exemplo de erro, explícito neste texto, é que espero tocar a consciência e ao mesmo tempo ser espelho para outros jornalistas. E embora a ‘grande imprensa pequena’ esteja empenhada em criar o mais perfeito inferno para os que aqui ficam, envergonhada, abaixo minha cabeça, fecho os olhos e desejo profundamente que a ‘senhora imprensa’ respeite a dor dos familiares e que deixe a menina Isabella, ao menos, por alguns dias, descansar em paz.

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Jornalista e acadêmica em Direito