Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa inverte causa e efeito

‘Vejam só, o conselho administrativo da Cretinice Sociedade Anônima e o diretor das Indústrias Reunidas Banalidades.’ (Karl Kraus)

‘Em casos duvidosos, decida-se pelo correto.’ (Karl Kraus)

A crise econômica internacional tem sido tratada na imprensa enfatizando-se o presente tanto quanto as incertezas sobre o futuro. É facilmente compreensível que assim seja – e assim, cabe aqui fazer duas observações iniciais. Primeiro: na ênfase dada pela imprensa, está implícita a noção já difundida de que a crise econômica atual começou com a bolha no mercado imobiliário norte-americano. Segundo: a consideração referente às causas que levaram à crise ajuda a compreender o presente e o futuro e essa compreensão das causas não foi estabelecida adequadamente. Nesse aspecto, a imprensa não ajudou nem ajuda a esclarecer devidamente as causas da crise atual. É preciso retomar a questão das causas da crise atual.

A crise econômica internacional não se iniciou com o estouro da bolha imobiliária norte-americana – nem antes, com a formação dessa bolha. A bolha imobiliária norte-americana não é a causa da crise posterior, mas é um efeito – e um efeito apenas secundário, um efeito superficial – da crise econômica que a antecede. Em tempo: é um ‘efeito superficial’ no sentido estrito de um efeito que aparece na superfície. De fato, a economia norte-americana tem produzido, durante os últimos anos, inúmeras bolhas – em diversos segmentos econômicos. A formação e o estouro da bolha no segmento imobiliário apareceram primeiro, e mais visivelmente: mas isso é um efeito, não uma causa.

Produção não acompanhou a bonança

Simplesmente, é preciso re-inverter o erro da confusão entre causa e efeito habitualmente difundida na imprensa por jornalistas e especialistas econômicos: a bolha no segmento imobiliário não é a causa, mas é, sim, o efeito da crise econômica internacional.

A ‘crise atual’, tal como percebida, não é causada pela crise financeira que seria decorrente do estouro da bolha imobiliária. Todo esse conjunto – formação da bolha imobiliária, estouro da bolha imobiliária, crise financeira – decorre da precariedade precedente da economia norte-americana. É preciso desfazer essa falsa causalidade: a ‘crise atual’ percebida é resultado da crise efetiva que existiu nos anos que antecederam a ‘crise’.

Apesar disso, viveu-se nos últimos anos ignorando a relação entre essa precariedade nos anos de bonança e a ‘crise atual’: como se essa precariedade pudesse ser combatida com os bancos centrais dos países fazendo cortes nas taxas de juros e injetando-se mais liquidez de dinheiro no mercado. Essa forma de combate à precariedade resultava cada vez mais no reforço das condições da precariedade.

No caso norte-americano, é claro: a economia crescia por meio do aumento da liquidez através dos empréstimos provenientes da poupança internacional. No entanto, é preciso considerar que esse aumento de liquidez ia para o aumento do consumo, sem um aumento efetivo nos segmentos produtivos. Para impedir que os segmentos produtivos desacelerassem, cortavam-se juros e aumentava-se a liquidez, o que aumentava o consumo. Daí, surgiram várias bolhas, como a do segmento imobiliário e no segmento financeiro. Aumentava o perigo; para combater o aumento do perigo, faziam novo corte de juros e nova injeção de liquidez na economia, causando novo incremento no consumo – sem aumento, em contrapartida, na produção. Resultado: o endividamento crescente, diversas bolhas em vários segmentos econômicos, crescimento econômico à míngua. Os Estados Unidos tornaram-se o grande tomador da poupança internacional: assim, por um lado sustentaram o crescimento econômico global, enquanto por outro lado o déficit norte-americano crescia a níveis insustentáveis. Desta forma, a bonança econômica internacional nos últimos anos foi permitida pelo aumento do consumo interno norte-americano, sem que a economia produtiva norte-americana acompanhasse essa bonança.

Escolhas e decisões

As autoridades econômicas combateram o perigo iminente de desaceleração, e mesmo de recessão, aumentando ainda mais os problemas que condicionavam inicialmente o perigo.

O que fizeram as autoridades econômicas norte-americanas ao longo dos anos que precederam a formação da bolha imobiliária? Cortaram juros e injetaram dinheiro na economia norte-americana por meio de empréstimos contraídos da poupança internacional. Procuraram os melhores resultados imediatistas, mas isso foi feito sem incremento na economia produtiva interna e com o aumento descontrolado do consumo interno, resultando nas inúmeras bolhas em vários setores da economia. Assim, os melhores resultados imediatistas, procurados pelas autoridades econômicas, potencializaram a ‘crise atual’.

Visando a evitar o desaquecimento e até a recessão da economia interna norte-americana, sucessivos conjuntos de medidas decididos pelas autoridades econômicas criaram esse quadro naqueles anos de bonança: os Estados Unidos tornaram-se o grande tomador da poupança internacional, enquanto cortes de juros e injeções de dinheiro no mercado interno norte-americano foram usados para manter o mercado interno aquecido por meio do consumo sem que a produção interna acompanhasse esse aquecimento; o aquecimento do mercado interno sem o crescimento sustentado da produção provocou o surgimento de bolhas (como a que surgiu no mercado imobiliário e a que ocorreu no âmbito financeiro). Assim, aqueles sucessivos conjuntos de medidas que pretendiam evitar os riscos de desaquecimento e de recessão causaram a ‘crise atual’. Não se trata de leis inexoráveis da economia, nem de dinâmica do sistema econômico, mas do resultado de escolhas que foram feitas e de decisões que foram tomadas.

Expectativa em relação às medidas

Nesses últimos anos, a política financeira de cortar as taxas de spread e injetar dinheiro aumentando ainda mais a liquidez seriam o paliativo para evitar o desaquecimento e até a recessão da economia. Na verdade, não foi paliativo: só teria sido paliativo se fosse feito algo para evitar que a economia se mantivesse aquecida prioritariamente pelos altos níveis de consumo, fazendo com que o aquecimento da economia fosse dirigido pelo incremento sustentando da economia produtiva. Sem outras medidas que precisariam ser tomadas para resolver efetivamente o problema, as medidas paliativas não têm caráter paliativo: ao invés de suspenderem os efeitos nocivos do problema, elas agravaram o problema ao mesmo tempo em que postergaram os efeitos. Em vez de paliativo, o funcionamento dessa política financeira aumentou o tamanho da crise então futura. Assim, não é que as decisões e escolhas feitas pelas autoridades econômicas não tenham conseguido evitar a crise e tenham apenas retardado os efeitos de desaquecimento e de recessão: elas pioraram a situação drasticamente.

A dívida norte-americana está próxima de 10 trilhões de dólares, enquanto o PIB norte-americano está na ordem de 12 trilhões de dólares – o endividamento norte-americano é, por baixo, 80% de toda a produção de um ano do país (talvez seja mais correto dizer 90%). Evidentemente, o endividamento dos Estados Unidos não chegou a esse montante e a esse percentual em relação ao PIB nacional por causa da bolha no segmento imobiliário. É o contrário: a formação da bolha no segmento imobiliário é decorrente das medidas referentes aos crescentes déficits do país, que contraiu nesses anos empréstimos massivos da poupança internacional (dinheiro da poupança internacional proveniente sobretudo dos países asiáticos) para manter a economia interna aquecida – sem crescimento da produção compatível com esse aquecimento.

Quanto a esse aspecto, então, a questão é: se o problema não decorre da formação da bolha imobiliária nem da crise financeira resultante do estouro da bolha imobiliária, a política financeira é limitada demais para resolver o problema. Cortar taxas de spread e aumentar a liquidez injetando mais dinheiro (a nova versão disso é socorrer as instituições financeiras em situação de desespero) só pode ser, no máximo, paliativo. Como a imprensa ajudou a difundir como verdade a versão – errônea, para não dizer falsa – de que a ‘crise atual’ decorre da bolha imobiliária, as pessoas, perplexas, estão apreensivas na expectativa de saber se as medidas recentemente anunciadas por essas mesmas autoridades econômicas que estiveram tomando decisões nos últimos anos poderão funcionar a contento. Foram essas mesmas autoridades econômicas que, nos anos de ‘bonança’, provocaram e alimentaram essa ‘crise atual’. Enquanto isso, aqueles que ganharam fortunas com o estado de coisas causado pela bonança nos primeiros anos do milênio até agora o fizeram se beneficiando enormemente da ‘crise atual’ que se iniciou. Repetindo: a ‘crise atual’ é efeito da crise efetiva que já existia durante a ‘bonança’ dos anos precedentes.

Diversas bolhas

Medidas de política financeira que poderiam ter sido tomadas nos anos anteriores poderiam ter ajudado a evitar a crise que se avizinha: teriam que ser feitas coadunadas com outras medidas não estritamente financeiras. Preferiu-se tomar o caminho de cortar sucessivamente taxas de spread e aumentar sucessivamente a liquidez nos mercados. Ano passado, o ex-presidente do Fed durante mais de quinze anos (antecessor imediato do atual) lançou um livro que apontava a inevitabilidade de uma crise que se avizinhava. Esqueceu-se de dizer como ele participou de maneira importante das ações que a tornaram inevitável. Nos oito anos do governo Reagan e nos quatro anos do governo Bush pai, os déficits da balança comercial norte-americana cresceram imensamente; essa tendência de doze anos foi parcialmente revertida nos oito anos do governo Clinton; depois disso, os déficits e o endividamento aumentaram exponencialmente devido às escolhas e decisões tomadas pelo governo Bush filho.

Sobre a economia norte-americana, analistas e jornalistas especializados têm discutido se a crise financeira atual vai afetar a economia produtiva – e, em caso positivo, o quanto vai afetar. Assim, a idéia é que a crise financeira atual (que seria decorrente do estouro da bolha imobiliária) pode se tornar causa da crise na chamada ‘economia real’ (isto é, a economia produtiva). A eventual crise na economia produtiva no futuro próximo seria efeito dessa crise financeira atual. Novamente, esse modo de analisar comete uma inversão nas relações de causa e efeito. É preciso re-inverter esse modo de considerar a questão: a economia produtiva norte-americana já está com problema grave nesses últimos anos, ao longo de todos esses anos de ‘bonança’ econômica internacional – todos sabemos que o crescimento do produto interno bruto norte-americano tem sido fraco e que paira, há anos, a ameaça de desaquecimento e até de recessão da economia norte-americana. É o conjunto de problemas na economia produtiva (relacionados aos déficits crescentes na balança comercial, ao endividamento crescente na ordem de 80% do seu PIB e ao papel exercido pelos Estados Unidos como grande tomador de empréstimos da poupança internacional) que, causando a formação das diversas bolhas nos diferentes segmentos da economia norte-americana, provocou o gravíssimo problema financeiro atual.

Causa e conseqüência

O paradoxo é que o grave problema na economia norte-americana gerou problemas maiores ainda em outros países do que nos próprios Estados Unidos.

Retomando: negligenciar – como fazem analistas e jornalistas especializados – os problemas na economia norte-americana nos anos de ‘bonança’ que antecederam a ‘crise atual’ não ajuda as pessoas que se informam por meio da imprensa a entenderem adequadamente o que ocorre, a compreenderem o que é essa ‘crise atual’. Considerar o estouro da bolha no segmento imobiliário como sendo a causa – quando é um efeito – da crise econômica, ou é o cúmulo da ingenuidade causada pela desinformação, ou é o supra-sumo da estultice incapaz de entender quais sejam as efetivas relações de causa e efeito.

A ‘crise atual’ iniciou-se em meados do ano passado como resultado da crise nos anos de ‘bonança’ que a antecederam; as autoridades econômicas negavam a existência da crise até semana retrasada.

Em tempo: não se trata de discutir a sucessão dos fatos ou o conhecimento dos dados: a discussão efetiva é referente à maneira adequada de se compreender o encadeamento das relações de causa e conseqüência.

Ameaça de propagação

Por um lado, alguns analistas e jornalistas econômicos disseram e repetiram na imprensa – pelo menos nos últimos dois anos – que a economia norte-americana perdeu nos últimos dez anos a importância que tinha: por isso, a eminente crise na economia norte-americana não teria conseqüências graves para a maior parte do mundo. O crescimento econômico chinês seria o principal contrabalanço à precariedade econômica norte-americana: a economia chinesa vinha crescendo mais de 10% a.a., enquanto a economia norte-americana vinha lutando fortemente para evitar a desaceleração e até a recessão. O PIB norte-americano representava, na década de 90, 33% do PIB mundial, enquanto agora representa apenas algo em torno de 25% (evidentemente, há uma variação nesse percentual dependendo se o dólar se desvaloriza ou, como tem ocorrido nas últimas semanas em decorrência da ‘crise’, se valoriza). Agências econômicas não só previram tanto a decadência inevitável da economia norte-americana quanto a ascensão, também considerada inevitável, da economia chinesa, o que alçaria – inevitavelmente – a China à condição de principal potência mundial nas próximas décadas. Sendo assim, o mundo não sofreria muito com a eventual crise norte-americana que se avizinhava.

Na década passada, quando ocorreu a chamada crise asiática, houve uma grande preocupação e receou-se que a crise se propagasse no mundo inteiro. Foi a economia norte-americana que impediu que a crise contagiasse o mundo, permitindo resolver aquela crise. Durante um tempo, a economia mundial se viu ameaçada pela crise asiática.

Da mesma maneira, quando, antes, houve a crise da Rússia, também a economia mundial se viu sob a ameaça de propagação: também nesse caso o peso da economia norte-americana foi decisivo para debelar a crise iniciada na Rússia.

A teoria das bifurcações

Analistas e jornalistas especializados olharam para o índice de crescimento das economias norte-americana e chinesa nos últimos anos, observaram ainda a significativa queda da participação do PIB norte-americano em relação ao PIB mundial ao longo dos últimos anos e concluíram, assim, que o mundo não seria muito afetado pela eventual crise norte-americana.

Então, se a economia mundial foi tanto bastante afetada pela crise na Rússia quanto seriamente atingida pela crise asiática na década passada, como não seria muito mais gravemente abalada por uma crise profunda na economia que ainda representa ‘apenas’ 25% do PIB mundial?

Por outro lado, Wallerstein, conhecido economista e bastante respeitado em alguns círculos acadêmicos (talvez não seja errado dizer: mais conhecido e respeitado em círculos acadêmicos no Brasil do que fora do Brasil), há alguns anos disse que não existe a globalização apregoada no Consenso de Washington e afirmou que o capitalismo acabaria em poucos anos – dizia ele, então, que em menos de cinco anos o fim do capitalismo ocorreria inevitavelmente.

Perguntado sobre o que ocorreria após o fim do capitalismo, ele acionou a ‘teoria da bifurcação’: tudo se desenvolve até atingir uma bifurcação, mas é impossível prever o que ocorre a partir da bifurcação. Wallerstein não precisava mostrar que conhece uma formulação mais ou menos recente, provinda dos estudos físicos, químicos e biológicos, para dizer que não sabe explicar o que ocorreria depois do pretenso fim do capitalismo: o discurso meramente teórico da bifurcação não tem serventia para explicar; precisamente ao contrário, ele serve para não explicar. É desnecessário observar que a teoria das bifurcações serve, justamente, para estudar o comportamento de possíveis variações mediante a variação dos parâmetros.

Análises mais abertas e gradualistas

Na verdade, o economista foi impreciso sobre o que ocorreria antes do suposto ocaso do capitalismo. É fácil entender que a decadência derradeira do capitalismo seja compreendida como um ponto de bifurcação, mas por que o ponto em que Wallerstein estava quando fez sua previsão sobre o suposto fim do capitalismo também não era um ponto de bifurcação (de modo que seria impossível, naquele ponto, prever o fim do capitalismo)? Afinal, tão pouco tempo – menos de cinco anos – antes do fim do capitalismo certamente já deveria ser um ponto de bifurcação.

Afinal, essas previsões extremamente ambiciosas – seja da inevitabilidade tanto da ascensão hegemônica da economia chinesa na metade do século 21, quanto da decadência definitiva da economia norte-americana (feitas, por exemplo, pelas agências econômicas), seja da crise derradeira do capitalismo em no máximo meia década (feita por Wallerstein) – possuem caracteres historicistas. Essas previsões historicistas têm como base precisamente o esquema de inversões nas relações de causa e efeito. A imprensa especializada adora esse esquema: é bem fácil de ser entendido e gera notícias e ‘análises’ que causam impacto.

Apesar dessa facilidade, as pessoas que se informam acompanhando a imprensa ficam perplexas no que se refere à crise. O que mais dizer desse esquema, dessas ‘análises’ e dessas previsões que se fazem? Naquele tipo de previsões (feitas pelas agências de investimentos, presente na formulação teórica de Wallerstein e difundidas pela imprensa especializada em geral), tira-se muito da responsabilidade dos agentes econômicos e tudo é atribuído à ‘dinâmica do sistema’ (a ação dos agentes econômicos seria o efeito da suposta ‘dinâmica do sistema’): a crise é assim entendida em termos de um suposto fatalismo. O que precisamos é de análises que desfaçam e evitem essas inversões de causa e efeito: o resultado seria um modelo de análise bem mais aberto, mais gradualista, em que as previsões sobre o futuro seriam muito mais modestas – e muito menos imprudentes e impudentes.

Endividamento acima de 80%

Por exemplo: a decadência da economia norte-americana (e sua substituição pela economia chinesa como ‘hegemônica’) ao longo da primeira metade do século 21 não é uma inevitabilidade: mas para que os Estados Unidos retomem um crescimento consistente da sua produção e invertam a tendência de endividamentos crescentes, será preciso que, no futuro próximo, suas autoridades econômicas – no Banco Central e na equipe econômica governamental – ajam de modo bastante diferente do que as suas autoridades econômicas têm feito já há muitos anos – e será preciso ter coragem para tomar medidas duras e talvez impopulares que afetarão a população de maneira considerável (medidas de âmbito financeiro como cortar spreads e injetar liquidez sem direcionar esse dinheiro produtivamente, e não apenas no consumo, senão não serão, como não foram, suficientes). Talvez seja correto considerar difícil que isso ocorra. Mas é impossível fazer uma previsão de caráter historicista sobre isso: depende, efetivamente, de decisões a serem tomadas e de escolhas a serem feitas, não de tendências essencialistas da suposta ‘dinâmica do sistema’.

A realidade vivida está longe de se adequar ao modo como pensam (!) os formuladores dos esquemas de previsões historicistas. Compreender adequadamente a realidade vivida fica mais difícil diante do papel desempenhado pela imprensa – limitando-se, de maneira geral, a repetir e seguir o que dizem esses formuladores de esquemas interpretativos inconsistentes (posto que historicistas). Que entre para a história a balela de que a causa da crise foi o estouro da bolha no segmento imobiliário serve para isentar aqueles que foram os responsáveis pela crise – não somente porque não evitaram a crise, mas, principalmente, porque fomentaram as condições que efetivamente possibilitaram a criação da crise.

O endividamento acima de 80% do PIB é um problema muito grande. Mutatis mutandi, foi um estado de coisas assim que vivia a Argentina quando, na década passada, apresentou o calote aos investidores internacionais, desequilibrando seriamente a economia do país: a população vivenciou grandes problemas por causa disso. Imagine-se, então, o perigo de um endividamento dessa ordem por parte do país cuja economia ainda é 25% do PIB mundial.

Modelos pragmáticos

Outro exemplo de previsão modesta: as medidas inadequadas e insuficientes das autoridades econômicas e as suas inações nos anos precedentes de ‘bonança’ provavelmente terão conseqüências gravíssimas para milhões (seria exagero dizer bilhões?) de pessoas na ‘crise atual’ iniciada. Os que foram responsáveis por aquelas ações e inações nos anos precedentes não serão responsabilizados; os que se beneficiaram abusiva e inadequadamente nos anos de ‘bonança’ sairão incólumes (Paul Krugman, há alguns anos, têm escrito sobre isso no New York Times). Mas essa previsão de razoabilidade, baseada apenas no que é razoável esperar das decisões e escolhas a serem feitas, é de um tipo bem diferente das previsões proféticas de cunho historicista que costumam ser feitas – a rigor, nem é adequado usar a mesma palavra para um tipo e outro.

Num caso, trata-se de previsões feitas de análises efetivas das relações de causa e efeito; noutro, as previsões têm características de profecias historicistas. Em Wallerstein, por exemplo, as previsões não são decorrentes de análises efetivas, mas mais da vontade de profetizar – no caso, a decadência derradeira do capitalismo. As previsões referentes à inevitabilidade de que a China ocupará, na metade do século, a posição hegemônica decorre mais da vontade de fazer profecias do que das análises das condições efetivas. Esses analistas – que fazem a profecia da inevitabilidade da decadência máxima da economia norte-americana e da ascensão da economia chinesa até a metade do século – fazem parte do conselho administrativo da Sociedade Anônima a que se refere Karl Kraus no primeiro dos aforismas antepostos aqui como epígrafe. Por sua vez, Wallerstein representa a associação industrial referida na seqüência da mesma epígrafe.

Eles preferem os esquemas interpretativos que têm a presunção de fazer previsões de cunho historicista, mas que são incapazes de considerar as mudanças nas condições que ocorram entre as previsões feitas e o prazo a que se referem as previsões – no caso dos que advogam as virtudes da econometria, eles costumam se referir ao procedimento básico do método econométrico como ‘modelagem’, quando, na verdade, isso não tem nada a ver com a noção de modelo científico; o termo correto talvez fosse ‘moldagem’. Ao invés desses esquemas, pode-se pensar modelos de análise que, não tendo a pretensão de fazer previsões historicistas, têm a vantagem de ponderar com razoabilidade sobre as possibilidades e as possíveis mudanças nas condições: trata-se, aí, de desfazer as inversões nas relações de causa e efeito feitas por aqueles esquemas interpretativos. No que se refere aos seus princípios, parâmetros e procedimentos, os modelos analíticos pragmáticos são o inverso dos moldes teóricos (como aqueles usados na econometria).

Formulações econométricas

A imprensa especializada prefere seguir o caminho mais fácil – para ela. Deixa de cumprir sua função de ajudar a entender as causas que provocaram a crise para que seja possível compreender o que efetivamente é a crise.

As considerações desfazendo as inversões de causa e efeito mostram que a crise é condicionada por escolhas e decisões, não se tratando de uma fatalidade. Num outro âmbito, é preciso decidir entre, de um lado, as formulações teóricas que confundem as relações de causalidade e, de outro, as análises pragmáticas que podem desfazer essas inversões entre causa e efeito.

Analistas e especialistas preferiram fazer as previsões historicistas (a inevitabilidade da ascensão chinesa à posição de potência hegemônica e a inevitabilidade da decadência norte-americana ou a inevitabilidade do fim do capitalismo em pouquíssimos anos), deixando de disparar os alertas sobre os perigos e os sofrimentos evitáveis da crise.

Agências de investimento e instituições internacionais costumam fazer previsões econômicas de médio prazo. Antes do prazo, elas ‘revêem’ tranqüilamente suas previsões; a justificativa para essas revisões é que mudaram as condições. Elas não explicam porque não foram capazes de prever as mudanças das condições. Assim, elas fazem sucessivas revisões, de acordo com as sucessivas mudanças nas condições, entre a previsão inicial e o prazo final. O FMI, semana passada, reviu suas previsões sobre os crescimentos econômicos de países e sobre o crescimento da economia internacional em 2009: as condições teriam mudado por causa da ‘crise atual’ iniciada. Eles se pretendem capazes de prever, dois anos antes, que a economia internacional cresceria precisos 3,9% (e não 3,8% nem 4%) em 2009, mas foram incapazes de antecipar a possibilidade da ocorrência da ‘crise atual’ antes disso?

O FMI não pôde considerar que os problemas existentes há muitos anos nos Estados Unidos (déficits crescentes na balança comercial, mega-endividamento, economia sendo mantida aquecida através do consumo sem contrapartida na economia produtiva, excesso de liquidez gerando bolhas em diversos segmentos) gerariam uma crise como a que se iniciou? Não foi capaz de antecipar que, entre o ponto em que fez a previsão e o prazo referente de sua previsão (2009), poderia haver a crise?

Eu não costumo achar convenientes analogias ou linguagens figuradas, mas esse comportamento não é como de quem diz ver, de longe, uma mosca sem ser capaz de ver que a suposta mosca está no dorso de um elefante? Olhando com calma e direito e constatando sua incapacidade de ver o paquiderme, não deve sequer ser um inseto ali em cima.

Como, na realidade, a economia não costuma se restringir a algo como as CNTP, previsões econométricas feitas ‘desde que mantidas as condições’ não são muito esclarecedoras, a não ser sobre o próprio caráter leve dessas previsões – as formulações econométricas não são aptas a considerar as mudanças de condições e, antes, não sabem avaliar corretamente as condições.

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Historiador e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP, Campinas, SP