Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa marrom ou leitor marrom?

Acontece em Goiânia já há algumas semanas um espetáculo grotesco, oportunidade rara de observação da natureza humana devassada. Um investimento chamado Avestruz Master, que durante alguns anos remunerou seus clientes com juros bem acima do que se consegue por vias tradicionais (em torno de 10% ao mês), quebrou. Falência angustiadamente esperada e finalmente anunciada a milhares de pessoas que acabaram por não resistir à tentação.

Aqueles que não cogitaram, pelo menos uma vez, aplicar suas economias no avestruz (como se dizia com intimidade por aqui) que joguem a primeira pedra. Embora altamente temerário e com toda a pinta de ‘pirâmide’, o investimento era mesmo tentador. Não só por remunerar 20 vezes mais do que uma caderneta de poupança (afinal, roubar um banco ou traficar drogas certamente remuneram mais do que isso), mas por ser lícito, pagar em curto prazo (o que enchia a cidade de exemplos vivos de felizes investidores) e possuir fazendas e um frigorífico, o que desfazia sua fama de vender apenas papéis (comer-se-iam de fato avestruzes!).

Hienas em banquete

Com a notícia da quebra, começaram a pipocar nas seções de cartas de leitor dos principais jornais daqui cartas e mais cartas de leitores-urubus se refestelando na carniça chorosa dos investidores pegos no contrapé. O tom era sempre o mesmo: ‘Bem feito, quem mandou querer lucro fácil!’, ‘Coisa feia…’, ‘Nisso que dá a ganância’. E por aí ia. Devagar, timidamente, algumas cartas de investidores protestando acabaram aparecendo. O que desnudava um aspecto interessante: não só o não-investidor arrogava-se o direito de moralizar, como o investidor parecia aceitar a carapuça da vergonha moral.

Isso me motivou a escrever um artigo (Levanta a cabeça, avestruz!, 16/11/2005) em que denunciava a hipocrisia a que estávamos assistindo. Todos os que apontavam o dedo pro nariz culpado dos desafortunados (todos, sem exceção) teriam feito o mesmo se tivessem tido coragem para tanto. Ou alguém que acredita em Papai Noel também acredita ser preferível ver o dinheiro mofar a 0,6% do que apressar a obtenção do objeto dessa economia até 20 vezes? (Nesse ponto vale esclarecer: não tive coragem de aplicar meu dinheiro com vistas à casa própria no avestruz, faço parte do time dos medrosos).

Há alguns dias a triste história ganhou um novo e inusitado capítulo. Um dos jornais da cidade (que não cito por não ser meu objetivo criticar o jornal, mas nós, os leitores) publicou a lista completa dos investidores, com nome, sobrenome, ocupação e valor empatado. Não cheguei a ver a tal lista, mas tive notícia dela, sim senhor, várias vezes durante a semana. Foi ‘o’ assunto. Em qualquer lugar em que se reunissem mais de duas pessoas só se falava na lista. E o tom era o mesmo das cartas de leitor – moralizante. Só que com um tempero diferente. Passamos, os leitores, agora com acesso a uma informação preciosa e avidamente consumida (como hienas em banquete fedentino), a saber exatamente para quem apontaríamos nosso dedo de Deus. ‘Você viu quanto fulano tinha empatado?’, ‘Mas que coisa, hein, até dr. Fulano, advogado sério…’, ‘Fulano? Não acredito, até ele…?’

Volátil e disforme

A decisão do jornal de publicar a lista (parece) foi mais uma estratégia de publicidade do que propriamente comercial. Como eram muitos nomes (49.321), foi preciso fazer um caderno especial com 32 páginas, o que eliminou as chances de lucro, mesmo com todos os exemplares vendidos em tempo recorde (de acordo com informações do próprio jornal). Embora caiba perguntar se o ‘sucesso publicitário’ valeu a pena (teria sido publicidade positiva ou negativa?), não é, repito, minha intenção criticar o jornal, mas nós, leitores. O que me remete ao núcleo da questão: se uma tal decisão editorial foi tomada, não o foi gratuitamente, mas porque se sabia que teria respaldo no leitorado. Ora, as cartas de leitor (publicadas e não-publicadas) eram uma bola de cristal razoavelmente confiável quanto ao sucesso do empreendimento.

Plauto e Hobbes estavam errados, o homem não é o lobo do homem, mas sua hiena, seu urubu. Fartamo-nos em banquetes mórbidos e estamos sempre prontos a mostrar nossa face moralista enquanto não somos nós mesmos os pegos em flagrante. É a lei das selvas ao contrário. A lei do mais fraco. Do caráter mais fraco. Necessitamos de notícia ruim, desde que seja ruim para o outro, bem-entendido. E queremos detalhes. É nossa maneira de relaxar. Nossa catarse.

Num contexto desses a noção de ‘relevância jornalística’ (ou mesmo, senso lato, de ‘cidadania’) vai pro espaço. O ‘leitor caprichoso’ de Gabriel Tarde (A opinião e as massas) surge, prepondera, dita as normas. Medíocre, mediocriza o jornalista ‘atento ao mercado’. Infiel e preguiçoso, pouco dado a conceitos abstratos do tipo ‘ética’, ‘moral’ e até mesmo ‘honestidade’, pune com a mesma rapidez com que joga confetes, deixando perplexo e inconsolável aquele que se considerava sintonizado com ele, seu público-leitor. Só que, recorrendo a Tarde outra vez, este não chega a ser um público, mas uma multidão, uma massa volátil e disforme, ‘tirana de todos os que a paparicam, capaz de pisar em seu pescoço e assistir a sua morte sem tirar o sorriso frio da cara’. Com um leitor assim, jornal pra quê?

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Médico, doutor (UFMG) e postdoc fellow (Harvard University) em Oftalmologia, mestre (UFGo) e doutorando (UFSCar) em Filosofia, autor de Epitáfio (Nankin Editorial)