Há certas datas que poucas pessoas gostam de lembrar neste país. E uma delas, gostem ou não os golpistas, é o 31 de março. Ao registrar 45 anos do golpe militar de 1964, que derrubou o então presidente João Goulart, vale uma reflexão sobre a imagem que a grande maioria da sociedade brasileira tem sobre um dos temas mais caros da história do Brasil contemporâneo: os arquivos, ainda lacrados, da ditadura militar.
Qualquer defensor de uma sociedade democrática, por mais (neo)liberal que se reivindique, concorda que a tortura ou toda forma de totalitarismo é humanamente injustificável, seja do ponto de vista de qualquer área específica de leitura, formação ou atuação profissional. E, pois, já não está em pauta a (i)legitimidade e (i)moralidade de ações internacionalmente condenáveis de ataque à dignidade humana.
O que preocupa, de forma mais gritante sobre este período obscuro da história do Brasil, é a não abertura dos arquivos que informam o que se fez, de que modo e quem seriam os (ir)responsáveis por tais atos. Nada explica por que o atual governo federal – que foi eleito com base e amplo apoio de movimentos sociais e populares que lutaram contra a repressão do regime militar – ainda não tomou a decisão política de assegurar uma ampla e irrestrita abertura dos arquivos que podem contar a lacuna de memória que o país ainda registra sobre o período ditatorial. Afinal, o governo Lula não deve(ria) temer por nada do que ainda está escondido da população, não é mesmo? Se é assim, o que falta?
Presença e mobilização
Por que será que a Argentina, o Chile e o Paraguai já conseguiram abrir boa parte de seus arquivos dos governos (militares) ditatoriais que marcaram as últimas décadas do século 20 na América Latina? Na Argentina, por exemplo, tem general, que mandou e desmandou na década de 1970, preso por crimes de tortura. No Chile, as constantes tentativas de ‘fuga’ de Pinochet não calaram as vítimas da ditadura.
Enquanto isso, por estas bandas verde-amarelas, a ilusão de que a ‘anistia’ já teria resolvido tudo ainda é uma lenda usada como argumento para manter ‘escondidos’ os registros de prisões, tortura e execução de presos políticos por militares entre as décadas de 1960/70.
É certo que a mídia brasileira em muito contribuiu na luta pela (re)democratização e também na ainda não conquistada abertura dos arquivos lacrados, seja pautando, repercutindo os questionamentos de parentes e familiares das vítimas da tortura ou ainda cobrando agilidade política sobre o caso. Mas será que o silêncio, ou mesmo o fato de que até o momento o país desconhece os atos de barbárie registrados na ditadura, não precisa de mais agendamento do problema por parte da mídia?
Não resta dúvida de que a ‘ação’ da mídia também está associada às manifestações de setores da sociedade civil organizada. A presença e mobilização das Madres de la Plaza de Mayo, na Argentina, certamente em muito contribui para que o problema permanecesse vivo na memória e nos papos cotidianos de uma grande parcela da população do país vizinho.
Um estranho silêncio
E aqui, talvez exista um diferencial: os diversos movimentos e grupos sociais que, historicamente, lutam por melhor qualidade de vida e cidadania, poderiam associar, às demais ações cotidianas, por transparência na gestão do dinheiro público, a necessária bandeira da transparência na informação, no acesso coletivo ao que se fez, direta ou indiretamente, com a vida humana de milhares de brasileiros durante o regime militar.
Fica, pois, um desafio a todos os profissionais da mídia, comprometidos e preocupados com a transparência de gestão da vida pública brasileira para que (re)pensem formas de agendar um dos problemas e questionamentos mais obscuros da história do Brasil contemporâneo: a (não) abertura dos arquivos da ditadura.
Obviamente, tais preocupações não devem valer aos grupos de mídia empresarial (jornal, rádio ou TV), que também se beneficiaram e, inclusive, trocaram favores com os responsáveis pelo regime militar… Pois buscam, agora, negar o que a experiência de milhares de brasileiros registrou através da perseguição, tortura ou morte no referido período.
O fato, inegável, é que o agendamento de um problema social é uma das formas mais eficazes de contribuir para com a formação da memória histórica e, pois, dos modos de organização social. Pautar, informando ou questionando, o estranho silêncio público em torno da (não) abertura dos arquivos da ditadura militar é certamente um dos desafios e uma das possíveis contribuições que a mídia brasileira pode oferecer à história e para toda sociedade brasileira.
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Jornalista, professor da UEPG