Será que o Brasil – exemplo no futebol e na assistência aos aidéticos, além de uma das poucas nações com programa oficial de informática – é um dos raríssimos países que podem revelar ao mundo um sistema econômico-político ideal para a atual fase da humanidade, como dizia um amigo há pouco tempo? Os fatos que ocorreram na Bolívia, na semana passada, e a reação brasileira, principalmente da imprensa, ajudam a esclarecer nossas chances nesta direção.
O decreto de nacionalização do gás da Bolívia e seus antecedentes, desde a campanha presidencial de Evo Morales, lembram os primeiros anos da década de 1950, quando aqui no Brasil empreendemos campanha semelhante, chamada ‘O petróleo é nosso’. Acreditava-se que a independência do Brasil passava necessariamente pelo monopólio estatal do petróleo. Essa posição galvanizou boa parte da opinião pública: militares, estudantes e sindicalistas. Em contrapartida, os defensores da atividade privada eram os principais veículos da grande imprensa, particularmente a cadeia dos Diários Associados, com o PFL da época, a UDN, e o mundo empresarial: banqueiros, grandes comerciantes, que defendiam abertamente a presença do capital estrangeiro na exploração do petróleo.
Chateaubriand sempre fora pró-americano, desde a década de 20, quando teve como grandes aliados comerciais os dirigentes da Light e do complexo industrial Percival Farquhar, proprietário de estradas de ferro e da empresa que deu origem à Vale do Rio Doce. Por isso, os Diários Associados não poderiam adotar posição diferente da de defensor dos investimentos estrangeiros no país. Mas, mesmo com boa parte da imprensa na oposição – o jornal Última Hora, de Samuel Wayner, a grande sensação da imprensa carioca e paulista na época, abraçou a campanha –, em 3 de outubro de 1953, Getulio Vargas assinou o decreto de nacionalização do petróleo.
Cobrança de retaliação
Agora, a situação é oposta: a Petrobras, que nasceu da campanha nacionalista brasileira, é na Bolívia a empresa que explora os recursos, e Evo Morales o representante do mais legítimo nacionalismo de seu país. Morales, que se apresentou inicialmente com disposição de negociar, deve ter se cansado da burocracia e acabou numa atitude drástica.
A reação brasileira começou, é claro, na imprensa. Nossos órgãos de comunicação deram o tom. Primeiramente, a televisão se mostrou perplexa e com dedo em riste acusava Morales de traidor, por não cumprir as promessas de negociar impasses pelo diálogo, feitas tanto em sua visita ao Brasil, ainda candidato à presidência, como no programa Roda Viva, da TV Cultura, já presidente. Todos cobraram atitude dura, radical das autoridades brasileiras e, se fosse nos tempos da ditadura, um massacre dos bolivianos. As Malvinas brasileiras. Ninguém lembrou da campanha ‘O petróleo é nosso’, ou que os bolivianos também têm seus direitos, aliás, nas poucas vezes em que se falou do direito boliviano de nacionalizar, sempre havia referência aos ‘direitos’ da nossa empresa que, na Bolívia, é vista como exploradora do povo.
Ainda conduzidos por uma imprensa raivosa, os diversos setores brasileiros procuraram pressionar o governo federal a cobrar explicações do presidente Morales e até forçá-lo a mudar de posição com ameaças de retaliação. No encontro de Porto Iguaçu entre os presidentes de Brasil, Bolívia, Argentina e Venezuela, foi reconhecido o direito boliviano de nacionalizar o gás e ainda aceitou-se negociar o aumento dos preços do fornecimento, praticamente rasgando contratos em vigor.
Exploração imperialista
Segundo o geólogo de petróleo Giuseppe Bacoccoli, a opção da Petrobras pelo gás boliviano ocorreu depois que a empresa deu por perdidos os investimentos na Amazônia no que seria o gás brasileiro: Dadas as enormes distâncias entre as bacias produtoras no Norte/ Nordeste e os principais centros consumidores do Sul/Sudeste, existiam problemas quase intransponíveis de transporte do gás. O problema persiste até hoje. Merecem destaque as grandes reservas de gás natural na área do Rio Juruá, no Amazonas, descobertas em 1978 com elevados investimentos da Petrobrás. Hoje, 28 anos depois, ainda não foram aproveitadas comercialmente.
A Braspetro, subsidiária da Petrobrás, na sua caminhada internacional, obteve, inicialmente, concessões, entre outras, na Argélia, no Egito, na Líbia, no Irã e no Iraque, país em que os brasileiros descobriram um campo petrolífero gigantesco (Majinoon), na região fronteiriça com o Irã. Com o advento da guerra Iraque-Irã [1980-1988], fomos afastados da área, perdemos a concessão e, muito embora tenhamos recebido alguma recompensa, encerramos nossa participação naquela que ficaria conhecida como a descoberta da década. Na ocasião comentou-se que o Brasil não teria como defender seus interesses, já que o distante Iraque situava-se fora de sua área de influência geopolítica. A Petrobras se concentraria na América do Sul.
A Petrobrás agiu na Bolívia como em qualquer parte do mundo, inclusive como agem no Brasil as petrolíferas internacionais, de forma monopolista, praticando política de exploração imperialista e usando de toda a estratégia possível para garantir posição. Evidentemente, a campanha ‘O petróleo é nosso’, nos anos 1950, já demonstrava que os tempos eram outros: Standard Oil, Shell e as outras cinco gigantes do petróleo mundial sofreram a partir de então revezes jamais imaginados. A Petrobrás jamais se preocupou em avaliar o risco de seus investimentos na Bolívia, notadamente a condição de empresa estrangeira diante de um povo que vinha caminhando para um governo mais radical. Esqueceu-se, enfim, da máxima: para somar é preciso antes dividir. Exemplos de conduta equilibrada diante de desastre iminente não faltam. O mais marcante continua sendo o da ITT, a gigante da telefonia mundial, que no século passado, ameaçada pela lei antitruste dos Estados Unidos, abriu seu capital e dividiu-se em empresas menores.
Braço-de-ferro
O povo boliviano merecia uma empresa estrangeira que não fosse espoliadora. O brasileiro também não quer perder aquela imagem internacional do povo alegre, que o Carnaval e o futebol nos trouxeram. Entretanto, conduzido pela imprensa, o brasileiro acaba se sentindo lesado pela Bolívia. Atitude da imprensa que, sem exagero, nos lembra William Randolph Hearst, o magnata da imprensa americana retratado em Cidadão Kane, de Orson Welles: no início da Primeira Guerra Mundial, criou no povo americano, com as manchetes de seus jornais – que venderam bem mais –, um sentimento de urgência em participar do conflito.
A imprensa brasileira não quis aprofundar as causas do decreto de nacionalização de Evo Morales. Com isso, endossou praticamente a atitude da Petrobras, desde sua opção de investimento no vizinho até seu comportamento inadequado como empresa estrangeira. A Petrobras também agiu de forma irresponsável com o público brasileiro, pelos meios de comunicação, garantindo preço e fornecimento com base em contratos que já não existiam mais a partir do decreto de nacionalização.
Neste momento, a imprensa brasileira levanta outra questão, diante do possível aumento no preço do gás boliviano: as perdas da Petrobras comprometeriam o ganho dos acionistas. Será que alguém já parou para pensar nesta questão? Em primeiro lugar, o ganho da Petrobras no gás boliviano era realmente desproporcional, fazendo o povo de lá se sentir explorado. Em segundo lugar, usar braço-de-ferro com o adversário, como pretenderam os meios de comunicação, poderia custar muito mais. Em terceiro lugar, não é sempre que se ganha e há exemplos, como no Norte do país e no Iraque, na própria Petrobrás.
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Jornalista