De repente do riso fez-se o pranto. E das mãos espalmadas fez-se o espanto. Talvez os dois versos extraídos do Soneto da separação dêem conta do mais recente fenômeno da vida nacional: o efeito Severino Cavalcanti. Desde a eleição do parlamentar pernambucano para a presidência da Câmara, a imprensa não tem parado de reproduzir a indignação de comentaristas políticos, acadêmicos e articulistas. A estupefação tomou lugar da análise e um republicanismo insuspeito tem se mostrado vigoroso contra aquele que passou a personificar o arquétipo do atraso e reacionarismo na política brasileira. Mas há algo de errado no ar.
Para além da conjunção de fatores que derrotaram os candidatos favoritos, o que pegou a mídia de surpresa pode ter sido o tipo de cobertura dispensada ao processo político, bem como o funcionalismo apressado dos principais analistas. O que lemos sobre o Congresso limita-se ao que acontece no Plenário ou a informações de cocheira de lideranças conhecidas. As redações ignoram as comissões temáticas e os projetos apresentados por parlamentares menos cotados na bolsa de apostas dos jornalões. Além de Luiz Eduardo Greenhalgh, Virgílio Guimarães e José Carlos Aleluia, Severino venceu a narrativa das oficinas de consenso. Não seria a hora de o jornalismo repensar a sua própria prática perpassada pela lei do menor esforço e dos falsos dualismos?
Mandonismo e cartorialismo
Editoriais indignados lamentam a emergência do fisiologismo e conhecidos profissionais passam a discorrer sobre o retrocesso que isso significa. Mais uma vez, não prestam favor algum. Distorcem a realidade e se tornam reféns de suas próprias idealizações. Se quisermos um jornalismo-cidadão, é preciso acertar as contas com a própria história. O exílio no reducionismo ou nas taxonomias de ocasião nada acrescentam à opinião pública.
É preciso deixar claro que na vida político-partidária do campo conservador Severino não é a exceção, mas a confirmação perversa da regra. Expressão acabada de um fazer político que ignora a distinção entre público e privado, corporificação em estado bruto do patrimonialismo que, desde sempre, posterga uma República proclamada por insatisfação oligárquica, o deputado do PP é o filho sem lustro do conluio entre o latifúndio e os bacharéis. Sua maldição explica o nosso ordenamento jurídico-político como nenhuma Teoria da Dependência conseguiu.
Ao transformá-lo em ícone de uma direita atrasada que se abrigaria no baixo-clero, a imprensa corre o risco de se enredar numa trama perigosa, por suscitar duas questões significativas: o que caracterizaria a direita moderna? E quais seriam seus representantes, os condestáveis senhores do alto-clero? Aos órfãos do tucanato, cabe perguntar se estão falando daqueles que, em oito anos, atualizaram o mandonismo, se refestelaram no cartorialismo e não hesitaram em usar todos os expedientes fisiológicos para assegurar mais um mandato presidencial.
Personagens favoritos
A ‘modernidade’ desejada é aquela que produziu endividamento recorde do setor público, financeirizou a economia e, como em nenhum momento da história recente, precarizou as relações de trabalho? Tudo sob os aplausos da banca e as bênçãos do pensamento único que tomou conta das editorias de economia. Estranho que os defensores da estabilidade monetária como bem maior não tenham registrado o saldo final. Como destaca Emir Sader (Vingança da História, Boitempo Editorial), ‘em 2003 e 2004, o Brasil precisaria de US$ 1 bi por semana para financiar as amortizações da dívida externa de US$ 30 bi e o déficit em conta-corrente, de US$ 20 bi. Pode-se calcular as dificuldades se considerarmos que nos últimos anos o Brasil contou com o ingresso de US$ 20 bi, em média’. São números que, pela magnitude, não devem ser olvidados por quem pretende fazer um jornalismo sério.
Ou será que o conservadorismo moderno é propriedade dos cardeais do PFL? O que diferencia qualitativamente Antonio Carlos Magalhães, Jorge Bornhausen, José Agripino Maia, entre outros, de Severino Cavalcanti? A maior capilaridade do clientelismo? A capacidade de loteamento eleitoral nos seus estados de origem? O poder coronelístico que mostra sua carranca a qualquer dissidência regional? Ou, como resultante de tudo isso, um esquema de troca de favores com a grande imprensa? A famosa fonte que pauta. A notinha plantada em troca de confidências exclusivas. O que seriam as distinções clericais senão uma criação das relações entre o campo político e jornalístico?
Se lermos atentamente a mídia impressa, veremos que da coluna social à política, pagando pedágio na economia, o jornalismo brasileiro, com raríssimas exceções, se pauta pelo relacionamento personalista, pelo horror à distância e pela aversão à impessoalidade democrática e igualitária. Cada colunista tem seu personagem predileto. Uma conhecida profissional de O Globo não passa cinco dias sem abrir espaço ao deputado Francisco Dornelles. Outra, que durante muito tempo pontificou na página 2 do Jornal do Brasil, abriga permanentemente tucanos e tantos quantos se oponham ao atual governo. E certamente o leitor se lembrará de outros casos.
Operação-abafa
Concordamos com os que se opõem aos métodos do atual presidente da Câmara, só não entendemos os que pretendem classificá-lo como tipo ideal de práticas condenáveis. O que caracteriza Severino é exatamente isso: não apresenta novidade alguma. O que o expõe à execração midiática é ter rompido o pacto dos agendáveis. Não se ter conformado com a condição de lumpesinato da representação conservadora.
O nepotismo deslavado marca muito mais continuidade do que disjunção com práticas até bem pouco tempo toleradas pela grande imprensa. Talvez seja o caso de lembrarmos de um nome tão complicado de escrever quanto emblemático: David Zylberstajn, o primeiro-genro, diretor da Agência Nacional de Petróleo no governo FHC. Pode-se argumentar que tinha qualificação profissional para o cargo, mas bastou uma separação conjugal para selar seu destino. Conforme relata IstoÉ, em sua edição de 27 de julho de 2002, o parentesco norteava decisões palacianas.
‘Hoje, David está separado e assumiu publicamente seu romance com a executiva Maria Sílvia Bastos Marques, que preside a Companhia Siderúrgica Nacional. Fora da família presidencial, David passou a ser malvisto pelo clã Cardoso, especialmente pela ex-sogra Dona Ruth, mas continua no governo. Só que o presidente já deixou claro que não o quer mais no cargo.’
A chantagem que Severino tentou fazer com o presidente Lula é tida como intolerável pela imprensa. E é. Mas será um dado novo? Algo que revele uma situação-limite com a qual nunca transigimos? Deixemos que o passado venha à tona.
Em 1995, enfurecido pelo vazamento da célebre ‘pasta rosa’, onde haveria registro de doações do sistema financeiro a campanhas eleitorais, o senador Antonio Carlos Magalhães exigiu a punição dos responsáveis pela divulgação, tendo chamado os diretores do Banco Central de marginais. Qual a reação dos veículos que, hoje, vociferam contra Severino? Operação-abafa, usando para isso outro escândalo: o da Igreja Universal.
E o que dizer da solução encontrada pelo governo para resolver o problema do Banco Econômico? O Estado assumiu a parte podre, enquanto a boa ficava com o Excel. Sensatez que tranqüilizou o mercado? Severino não produziria algo semelhante.
Palatável aos editores
Em 31 de janeiro de 2001, a Folha de S.Paulo estampava em sua primeira página: ‘ACM ameaça denunciar verdades contra FHC e Eduardo Jorge se Jáder Barbalho for eleito presidente do Senado’. O senador baiano vivia seu ocaso político, mas ainda dispunha de poder de fogo para produzir manchete em grande jornal. Se aplicados os mesmos pesos e medidas com que se julgam as práticas e bravatas de Severino Cavalcanti, estaríamos à beira de uma crise institucional. O pacto intra-elites tem uma plasticidade que impressiona.
Em sua obra-prima de 1936, Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Hollanda pôs o dedo na ferida que permanece aberta até hoje:
‘Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semi-feudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no velho mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas.’
É nesse marco teórico que podemos compreender uma burguesia sem projeto nacional, uma imprensa cordial e Severino Cavalcanti. Os três mantêm especificidades, é claro, mas se unem no atraso que perpetuam. O infortúnio do último foi sua atípica mobilidade. Se mudar o nome para Fernando, talvez se torne palatável aos editores que o hostilizam. Afinal, não deixará de ter tomado uma decisão cartorial.
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Professor-titular de Sociologia da Facha, Rio de janeiro