Um marciano que tivesse chegado ao estado de São Paulo na segunda-feira, 15 de dezembro, certamente teria todos os motivos para elaborar por conta própria uma teoria conspiratória de primeira qualidade.
Entidade objeto da trama: a TV Cultura de São Paulo, emissora que se em suas quase quatro décadas de existência nunca alcançou níveis espetaculares de audiência; em contrapartida, foi aos poucos conquistando uma invejável aura de prestígio.
Tema da trama: a complicada motivação misteriosamente escondida (ou, quem sabe, num mistério ainda maior, alardeada com toques de clarim) por trás da exibição, em duas edições consecutivas, do programa de entrevistas Roda Viva, que até pouco tempo constituía, com justa razão, uma referência no jornalismo televisivo do país.
Objetivo da hipotética teoria conspiratória: detonar, de maneira meticulosamente calculada, numa espécie de haraquiri eletrônico, o programa em que já foram entrevistadas, por jornalistas de alta competência, figuras marcantes de nossa vida política, cultural e artística. Sempre com algo relevante a dizer. E, muitas vezes, tendo que ouvir contestações procedentes àquilo que diziam.
‘Tradição dos terráqueos’
Inicialmente, ao ser informado que no programa de 15/12 o centro das atenções seria o falante presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, é bem provável que nosso marciano pensasse algo como: ‘Nada mais certo, esse figurão vive nas manchetes criando polêmicas, vale a pena saber o que pensa e o que pretende com suas declarações cada vez mais explosivas.’
Mas não ia demorar muito para que nosso homem de Marte – na impossibilidade de grafar seu nome, vamos chamá-lo de Marty – fosse forçado a rever seu ponto de vista. Afinal, em todas as partes da galáxia onde existe liberdade de imprensa (em seu planeta, a independência para defender e divulgar todo tipo de opinião já existe há milênios, sem sofrer interrupção de qualquer espécie), parece estranho, muito estranho, que na banca encarregada de entrevistar o entrevistado não tivesse sido escalado um escasso entrevistador de posições notoriamente contrárias às dele. Pior: um dos assim chamados ‘entrevistadores’ seria, segundo lhe disseram seus novos amigos terráqueos, uma espécie de assessor de imprensa do presidente do STF.
Conhecedor, por experiência própria, que entre o pessoal que gosta de acompanhar o jornalismo há muita fofoca (uma praga interplanetária!), Marty resolveu de todo modo dar um voto de confiança aos responsáveis pelo programa, a que assistiu com enorme atenção.
Ao final, pensou consigo mesmo: ‘Bem, suponho que seja uma tradição dos terráqueos, fazer entrevistas com 95% de louvação ao entrevistado e apenas 5% de críticas.’
Jornalistas enfurecidos
Sete dias depois, na edição seguinte do programa, lá estava nosso marciano, disposto a verificar se suas observações anteriores tinham alguma procedência. O entrevistado, dessa vez, era exatamente o oposto do douto Mendes, o jurista que em 48 horas concedera dois habeas corpus a um homem de negócios acusado formalmente de negociatas altamente irregulares: agora, tratava-se de um certo Protógenes Queiroz que, segundo lhe contaram seus novos amigos terráqueos, vinha a ser precisamente o agente policial que por duas vezes havia dado voz de prisão ao elemento.
Antes que o programa chegasse à metade, Marty de Marte não já conseguia mais esconder sua perplexidade. Seria, então, possível que os princípios do raciocínio lógico não fossem, como sempre lhe ensinaram e ele sempre acreditou, de validade universal? Afinal, para manter uma linha de coerência com o Roda Viva da semana anterior, seria de esperar que a entrevistar o delegado Protógenes estivessem, em ampla maioria, apenas pessoas dispostas a lhe ‘levantar a bola’ – pitoresca expressão que os terráqueos do Brasil gostavam de empregar e que muito o divertira.
Em vez disso, no entanto, o que via na tela nosso visitante vindo de tão longe? Apenas uma bancada de jornalistas enfurecidos, atacando o delegado de todas as formas, mal lhe dando tempo para respirar entre um e outro libelo acusatório.
‘Sabotagem para enterrar o programa’
Não foi preciso passar muitos minutos para que o marciano, que já havia dado aos novos amigos de nosso planeta mostras suficientes de seu caráter afável, se levantasse indignado, dirigindo-se às pressas de volta à sua nave espacial, seguido pelos terráqueos que já não conseguiam esconder sua crescente simpatia por ele.
‘Nunca fui de acreditar em teorias conspiratórias, e olhem que em Marte as temos de sobra’, foi dizendo enquanto se instalava na cabine de comando e, com gestos impacientes, preparava o veículo para decolagem imediata.
Depois disso, de acordo com o que me contaram os colegas que tiveram o privilégio de conviver com Marty durante seus sete dias de permanência entre nós, a única coisa que puderam escutar foi uma frase quase abafada pelo zumbido dos motores da nave na hora da decolagem: ‘Esse pessoal do Roda Viva só pode estar de brincadeira! Está na cara que isso é uma sabotagem para enterrar definitivamente o programa.’
Segundos depois a nave marciana era apenas um ponto cada vez menor no poluído céu de São Paulo.
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Jornalista, autor, ator e diretor teatral, apreciador de longa data do planeta Marte