Há uma prática jornalística amplamente disseminada cuja característica básica é a de esquentar o clima, armar intrigas, fazer fofoca, divulgar interesses particulares, colocar uns contra outros, destruir reputações, eleger bodes expiatórios e inimigos comuns, definir o ‘eixo do mal’, bajular os poderosos. Esse jornalismo afasta o cidadão do entendimento complexo das coisas, converte pessoas em personagens, torna os horizontes nublados e as perspectivas opacas. Esse jornalismo irrita e cansa, anestesia e ilude, engana o crédulo e atrasa os avanços, os progressos, a evolução das mentalidades. Para ele, o mundo é dividido entre mocinhos e bandidos, a vida não tem mistério.
Já o jornalismo que se interessa exclusivamente pelo universo padrão da maioria das celebridades, onde tudo é belo, brilhante e caro, onde o céu é sempre azul e a vida se resume ao gozo proporcionado pelo consumo, é um jornalismo do tamanho das lentes que usa para captar o que ocorre à sua volta. O que elas são capazes de enxergar? Alegria, glamour e prazer. Para esse jornalismo, o mundo é cor-de-rosa. Está dividido entre os que têm e os que não têm: dinheiro, posição social, juventude, potência… A solução está em comprar, comprar, comprar…
Empresas precisam sobreviver
No outro extremo, as coberturas sensacionalistas, que exploram inadequadamente a perversão e o crime, e aquelas que espetacularizam os acontecimentos, sem cuidado com as devidas proporções, são capazes de produzir uma sociedade assustada, medrosa, excitada e mal informada. No limite, podem induzir a fobias, ao pânico e à depressão. Para o jornalismo que as produz, vivemos em um lugar onde só há o perigo e a maldade. A solução está em proteger-se, isolar-se, defender o seu, afastar-se da convivência coletiva, dos projetos comuns, agir com intolerância, discriminar as minorias, apoiar a pena de morte… para todo aquele que ameaça.
O jornalismo que vulgariza a dor e a tragédia, retirando-as de seu contexto social e político, é leviano, entristece a alma, brinca com os sentimentos, despreza o fraco e humilha o pobre. Ele é o mesmo que atribui as conseqüências dos chamados desastres ‘naturais’, tão presentes nos nossos dias, aos caprichos de Deus, sem a menor conexão com as decisões (ou a negligência) dos poderes públicos, com a história, os modelos de desenvolvimento econômico e a ocupação do território ao longo do tempo.
Esse jornalismo, capaz de provocar a compaixão do público e de levá-lo às lágrimas, é o mesmo que condena ao ostracismo mais absoluto os fatos que foram manchete um dia. Depois que eles não atingem mais os resultados planejados, são solenemente esquecidos. Para esse jornalismo, o mundo é formado por uma coleção aleatória de fragmentos que não guardam a menor relação entre si. São fruto do mero acaso ou de coincidências. O mundo é uma sucessão infindável de imagens, ruídos e sensações. Tem um quê de absurdo. Não há como entendê-lo. Logo, é melhor não pensar sobre ele.
Muitas dessas condutas jornalísticas são alimentadas na expectativa de agradar ao público, conquistando popularidade, anunciantes e bons resultados em vendas. Afinal, os grupos de comunicação precisam sobreviver.
Luz sobre as sombras
A história confirma que, durante toda a sua existência, o jornalismo sempre foi estruturado como um negócio destinado a prosperar, já que exercê-lo requer a mobilização de recursos físicos, humanos e tecnológicos que implicam em custos. Isso, no entanto, não pode, em tempo algum, ser considerado como um problema. Pelo contrário, deve ser tido como obra do engenho humano, sempre original e criativo. O comércio e as empresas são forças civilizatórias: geram riquezas e as fazem circular, aproximam os povos, abrem postos de trabalho, possibilitam o sustento das pessoas e de suas famílias, viabilizando sonhos e projetos de vida.
O problema é quando, aprisionado pela lógica obsessiva da cobiça, o jornalismo passa a tratar a notícia apenas como uma mercadoria, desconsiderando seu imenso potencial e suas outras facetas. O jornalismo para o qual a meta única é faturar é um jornalismo sem futuro, porque tende a perder a sua credibilidade, único capital de que realmente dispõe. Esse jornalismo fatalmente perderá a batalha da audiência e dos lucros para linguagens mais sedutoras e mais sinceras, como as inventadas a toda hora pela indústria do entretenimento.
Por conta desse fracasso iminente, os operadores do jornalismo precisam fazer o caminho de volta, relembrar o real papel que cabe ao seu ofício e exercê-lo com paixão e serenidade.
O jornalismo é a arte e a técnica de contar histórias, de compor a memória de um povo ou de uma comunidade, em todas as suas misérias e glórias. Deve motivar o seu público a pensar sobre temas essenciais, ajudá-lo a questionar seus mitos e tabus e incentivá-lo a percorrer a trilha da desconfiança, da dúvida e da perplexidade, por meio do confronto saudável e inteligente das idéias. O jornalismo bem feito não deve contentar-se em servir pratos de fácil digestão ou que sejam agradáveis apenas aos olhos ou ao olfato.
Ao jornalismo, cabe desempenhar a deliciosa e dolorosa missão de lançar luz sobre as sombras que nos acompanham, sempre, pela vida afora.
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Advogado, jornalista, mestre em Direito Internacional (UFMG) e doutorando em Direito Internacional (Universidade Autônoma de Madri)