Informações e detalhes acerca do assassinato do jornalista Paulo Eleutério Filho (Paulo Eleutério Cavalcanti de Albuquerque), que teve lugar na sede do jornal O Liberal, em Belém do Pará, no dia 20 de maio de 1950.
Antes de entrar em detalhes acerca de algumas informações e de formular críticas a algumas opiniões, bem como a alguns depoimentos prestados por ocasião do julgamento do capitão do exército Humberto Pinheiro de Vasconcelos, assassino impronunciado – e, não, inocentado – apesar dos inúmeros depoimentos prestados por testemunhas daquele crime que marcou de forma indelével a história do Pará e da própria imprensa brasileira (depoimentos muitos dos quais já desaparecidos, ou propositadamente escondidos, por conveniência de alguns adeptos do governo Assunção), vou colocar algumas informações ainda muito pouco divulgadas a respeito da história de meu pai.
Filho do professor Paulo Eleutério – um dos fundadores da Faculdade de Direito de Manaus e da Faculdade de Engenharia de Belém – e de Amélia Mendes Álvares da Silva, Paulo Eleutério Filho nasceu em Manaus, no dia 9 de fevereiro de 1914 e, aos 18 anos de idade e já morador de Belém, foi um dos líderes do grupo que aderiu, no norte do Brasil, à Revolução Constitucionalista que teve origem em São Paulo no mês de julho de 1932.
Imóveis e seguro de vida
Oficial da reserva da infantaria do Exército brasileiro, foi chefe de Polícia (Secretário de Segurança Pública) nos territórios do Acre e do Amapá – onde foi o primeiro diretor do jornal Amapá e responsável pelas primeiras transmissões da Rádio Difusora de Macapá – e do Estado do Pará, onde atuou na redação do jornal O Liberal, local onde foi ferido. Aliás, foi em Macapá que conheceu o militar que o assassinou na sede daquele jornal paraense, já tendo ocorrido entre eles, naquela época, algumas divergências de natureza política, pois aquele militar atuava em um partido de oposição ao partido que apoiava o coronel Janary Gentil Nunes, o primeiro governador do território do Amapá.
Assim, iniciamos os presentes comentários que têm por base algumas das informações constantes do site da internet intitulado Observatório da Imprensa.
No final da tarde do dia 19 de maio de 1950, meu pai convidou a mim e à minha mãe, Celina, para conversar no terraço da entrada de nossa residência (Rua Mundurucus, 610) a respeito do pesado clima político que rondava o Pará naqueles dias. Naquela oportunidade, meu pai informou-nos a respeito de um artigo que havia sido escrito pelo jornalista João Malato criticando o partido de oposição e o capitão do exército Vasconcelos, seu antigo adversário desde os tempos em que morávamos em Macapá. E, ao mesmo tempo, informou-nos que Malato não estaria na redação de O Liberal no dia seguinte por ter receio de um revide ou por questões de constrangimento pessoal. Em seguida, meu pai informou-nos a respeito dos imóveis de nossa família e de seu seguro de vida, mostrando-nos os respectivos documentos, que se encontravam arquivados em uma pasta que guardava em uma das salas da nossa casa, utilizada como seu escritório particular.
‘Querem conversar com você’
Logo após aquela reunião, meu pai chamou-me para subir ao seu quarto, onde também guardava sua coleção de armas, mostrando-me um revólver de sua propriedade, de aço inoxidável, calibre 38, da marca Smith&Wesson e com empunhadura de madrepérola, que seria entregue no dia seguinte a um armeiro por estar com o cano bastante desgastado, já que o utilizávamos bastante em treinamento no sítio, em caçadas e na casa de um amigo seu, em Belém, na qual havia um moderno stand de tiro, movimentado eletricamente. Meu pai era um excelente atirador, tendo sido o segundo melhor de sua turma do CPOR (Curso de Preparação dos Oficiais do Exército). E lembro-me bem que ele me alertou : ‘Nunca use um revólver nesse estado’, ao que respondi : ‘E por que o senhor irá levá-lo amanhã para o armeiro, em vez de esperar mais alguns dias?’ E ele respondeu : ‘Porque estou cansado de vê-lo com esse cano tão estragado.’
Aquela foi a última vez em que conversei com meu pai pois na manhã do dia seguinte eu e meu irmão Luiz Felipe tínhamos que sair cedo para estudar. Anos mais tarde, ao conversar com minha mãe a respeito daquele horrível dia, ela me disse meu pai, ao descer do quarto para tomar café, lhe disse: ‘Tive um sonho horrível nesta noite.’ Eu perguntei : ‘Como foi esse sonho?’ e ele respondeu : ‘À noite, quando voltar, eu te contarei.’ Parece que ele estava adivinhando o que iria acontecer.
Eu estava assistindo a uma aula de português quando, por volta das nove e meia, entrou na nossa sala o cônego Faustino de Brito, diretor do Colégio Progresso Paraense, onde eu e meu irmão estudávamos. Olhando para mim, disse : ‘Paulo, arruma as tuas coisas e vai para a Secretaria, pois lá estão alguns delegados de polícia que querem conversar com você. Aproveita e chama também o teu irmão, que está lá embaixo, na sala dele.’
Honesto, sério e patriota
Não lembro muito bem de quantos eram os delegados que tinham ido ao colégio para conversar comigo, mas eram uns quatro ou cinco, a maioria dos quais eu conhecia pessoalmente. Ao me ver, um deles me disse : ‘Houve um tiroteio na sede do O Liberal e seu pai foi ferido.’ Eu perguntei : ‘Foi ferido em que parte do corpo?’ E ele respondeu : ‘Em uma das pernas.’ Não fiquei muito nervoso, pois havia aprendido com meu pai que um ferimento em uma das pernas não era dos mais sérios. Porém, logo ao chegar em casa, com uma multidão à porta e com uma grande quantidade de parentes e amigos da família no interior da mesma, fui informado de que havia acontecido algo de mais grave, em maiores detalhes: o tal capitão, que já conhecia meu pai há vários anos, entrou na redação do jornal aos gritos, perguntando por João Malato e, ao ver meu pai, de quem era antigo adversário político, atirou em sua direção com uma pistola calibre 45, do Exército brasileiro, acertando de raspão a testa do mesmo e naturalmente causando-lhe brusca tontura. Mesmo assim, meu pai tentou encontrar o seu revólver Smith&Wesson, que estava guardado na gaveta de sua mesa, já que ele iria levá-lo ao armeiro na tarde daquele mesmo dia. E, apesar daquele choque inicial, segundo algumas testemunhas ele ainda conseguiu descarregar aquela arma sem qualquer precisão, mas conseguindo acertar em um dos braços do tal capitão. Em seguida, em virtude de não ter cartuchos de reserva, meu pai desceu em direção às oficinas do jornal, que ficavam em frente à Secretaria da Segurança Pública, perguntando aos gritos se alguém teria balas de calibre 38. Nesse instante, indo atrás dele, o tal capitão atingiu-lhe uma das pernas e as costas, cortando-lhe um dos pulmões em trajetória vertical e atingindo o coração do mesmo com a tal pistola 45.
E, ainda consciente, no interior da ambulância em que estava sendo conduzido ao hospital, meu pai disse aos médicos : ‘Vejam bem o que vocês vão fazer, pois tenho três filhos para criar.’ Mas veio a falecer por volta das 12 horas e vinte minutos, na Santa Casa da Misericórdia. Aquela frase foi lida por mim alguns anos depois, em uma das páginas do processo judicial. Mas me dói até hoje. Meu pai foi um homem honesto, sério e patriota como poucos.
Uma mancha indelével
Tive oportunidade de ler alguns testemunhos e algumas declarações que, infelizmente, não se constituem em verdade, de vez que, após a mudança do governo daquele estado, por razões de interesse pessoal muitos fizeram declarações mentirosas, entre os quais se inclui o sr. João Malato, que foi o pivô de todo aquele triste acontecimento.
Para concluir, e para registrar essa imagem de meu pai, gostaria de contar mais um outro episódio: alguns meses depois nos mudamos para Pernambuco e, posteriormente, no final de 1955, para o Rio de Janeiro. E, por volta de 1976, em viagem de trabalho ao Pará e na primeira visita que fiz a Belém após nossa mudança e após o ano em que ocorreu aquele trágico episódio, fui ao cemitério de Santa Isabel visitar o túmulo de meu pai e, após alguns minutos, chamei um táxi e pedi para que me levasse à Travessa Castelo Branco, onde havia nascido minha irmã caçula, Ana Amélia. Ao passarmos em frente à casa onde havíamos morado, e sem ter a menor noção de quem eu era, o motorista falou, para meu espanto e também para meu orgulho: ‘Nesta casa morou um grande homem.’
Sobre aquele triste acontecimento nada mais gostaria de divulgar e aproveito esta oportunidade para agradecer aos amigos do Observatório da Imprensa e contar toda a verdade a respeito daquele episódio, que manchou de forma indelével a história da imprensa brasileira. Da mesma forma, acrescento um texto escrito por meu pai no ano anterior à sua morte, texto esse que jamais esquecerei (‘Trítico do Amor Familial’).
Uma página de Paulo Eleutério Filho
(Revista da Academia Paraense de Letras, nº 2 – janeiro de 1952)
Como uma dádiva preciosa aos nossos leitores, principalmente àqueles que conheceram o nosso saudoso confrade Paulo Eleutério, publicamos a seguir um escrito literário do jovem titular da Academia Paraense de Letras, onde ocupava a cadeira de Ferreira Pena.
É uma página de profunda emoção, em que o sacrificado de 20 de maio de 1950 revela a sua sentimentalidade diante de seus pais (‘Ainda sou criança’), de sua esposa (‘Canção do Amor que envelhece’) e de seus filhos (‘Minha vida não se extinguirá’).
São verdadeiros poemas em prosa em que o brilhante intelectual reflete o requintado de sua cultura e a imensidade do seu coração em face de três estádios de sua gloriosa vida e de criaturas outrora felizes, que detiveram as expansões do seu amor filial, conjugal e paterno:
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Trítico do amor familial
I – Ainda sou criança
Oh! Vós que me destes a vida numa noite de amor! Como vos quero e amo e quanto vos agradeço e abençôo com toda a força do meu coração de filho! Não me deixeis sozinho e nem me abandoneis nesses Gólgotas do mundo sem o vosso conselho! Sinto-me fraco, nu e miserável, afastado de vossos olhos atentos e amigos. Tremo de frio nas intermináveis noites de inverno, se não me acolho à morna carícia do vosso agasalho. Quando me obrigam a lutar pelo meu lugar ao sol, faço-me de bárbaro e herói, mas o medo se enfurna em minh´alma de criança. Ainda sou infante, sou débil e minhas asas não podem voar para longe de vós. Dizeis-me que sois velhos, frágeis, mas eu vos devo tanto, que não posso acreditar que a idade vos reduziu a força e o tamanho…
II – Canção do amor que envelhece
Estou me sentindo velho. Há mais cansaço em meus gestos e meu coração anseia pelo repouso infinito. Caminho devagar pela estrada da vida, mudando os passos com cuidado para não perturbar o sossego da poeira. Permaneço compridas horas a mirar um inseto de asas nervosas ou uma graciosa flor que se debruça sobre sua haste. Meus olhos estão vendo mais que antigamente. E sentem a beleza que existe na contemplação. Todavia, alegro-me em saber que não estou sozinho nesse longo passeio que será o último. Alguém se ampara em meu braço, nos dias bons ou maus, ricos ou pobres, na saúde ou na doença, amando-me sempre até a morte nos separar…
III – Minha vida não se extinguirá
Não temo que a morte venha me destruir, em tempo algum. Sou imperecível e tenho certeza de que sobreviverei às maiores catástrofes da terra. Flameja em mim a chama sagrada da imortalidade que o milagre da procriação acendeu nas áreas primitivas. Orgulho-me de sentir latejar no peito, dia e noite, o sangue forte e vermelho de meus avós. Algum dia tudo isso cessará dentro de mim. Mas a luz que recebi acesa não se apagará quando o meu corpo esfriar com a chegada da grande escuridão gelada. Ela continuará brilhando nos olhos cintilantes de meus filhos, que serão como estrelas novas a me iluminar os passos nas trevas em que mergulharei.