Em tempos de tragédias anunciadas, sempre há lugar para o grotesco. Se os fatos ferem, a repercussão pode agravar, e nisso a mídia colabora. Há alguns dias, o UOL escorregou em uma pocilga, convidado por um leitor que chafurdava nos escombros das vidas de milhares de pessoas atingidas direta ou indiretamente pelo acidente de Congonhas. O internauta enviara ao portal uma fotomontagem que ‘criava’ uma vítima que estaria por se jogar da janela do prédio da TAM Express. O UOL publicou a cena, e, avisado do engodo por outros leitores, retirou-a com atraso, como observa a ombudsman do portal, Tereza Rangel:
‘A imagem entrou no fotoblog da redação às 11h19, foi para a home do portal às 12h20. Às 12h48, um leitor já alertava para a montagem. Foram mais 11 manifestações sobre a farsa no fotoblog, de 12h53 até 13h41. A foto ficou mais de uma hora na home do portal e só foi retirada do fotoblog às 14h20. Um erramos foi produzido às 14h33. Ele, porém, ficou restrito à lista de Erramos e a um texto onde antes havia a foto no fotoblog. Para a gravidade do problema, deveria ter sido publicado na home do portal imediatamente. Só foi para lá às 15h55, depois de a ombudsman requisitar uma explicação à redação e depois de ter sido reescrito, às 15h53.’
Não é de hoje que se tem optado por delegar ao público as prerrogativas que caberiam aos jornalistas. Em São Paulo, emissoras de rádio lançaram, há alguns anos, o expediente do ‘ouvinte-repórter’ – que entra no ar com informações sobre a cidade, sobretudo trânsito. Em meio a exemplos de trotes e palavrões, há casos de ouvintes que desmentem o verdadeiro repórter da emissora, desmoralizando, ao vivo, um profissional que, uma vez contratado, deveria contar com a confiança do veículo. Ainda que não sejam advertidos pela chefia, nesse confronto entre informações divergentes, os repórteres ficam expostos ao vexame. É o resultado de um meio cômodo de gastar menos e ‘cobrir’ mais, dado o tamanho da cidade.
Genericamente, essa auto-armadilha tem até nome: ‘jornalismo cidadão’. Sim, trata-se, em última análise, de uma redundância conceitual, mas não é o mais grave, como acabamos de testemunhar com o UOL.
Corrida do ouro
Na internet, a cobertura do acidente de Congonhas motivou uma espécie de corrida do ouro de imagens e outras informações. Em meio a notícias estarrecedoras, portais publicavam chamadas que incentivavam, freneticamente, o envio de relatos. Foi-se o tempo em que o ‘furo’ era um apanágio jornalístico. Hoje quem dá o ‘furo’ é a fonte. Nesse ritmo haverá quem proponha a criação do ‘Prêmio Esso – Categoria Internauta’…
Como se sabe, o espírito de porco é um atributo porcino e, não raro, humano. Nenhuma novidade. Tivemos agora mais exemplos entre os leitores. A colunista Soninha Francine, jornalista sensível e responsável, apresentou-nos uma amostra, em seu blog na Folha Online:
‘Aos que chegaram a ler o comentário postado comemorando a morte de um tucano, peço desculpas. Ele nunca deveria ter sido publicado. Quando os comentários se acumulam demais, aprovo todos para que sejam logo tornados públicos, mesmo que não tenha tempo de respondê-los. (Às vezes o tempo passa e eu acabo não respondendo nenhum). Mesmo os mais grosseiros, do tipo `relaxe e goze´ e `relaxe e morra´, como há vários aqui. Por norma, só não publico obscenidades stricto sensu. O resto, um retrato de como as pessoas pensam, deixo passar. Mas às vezes corro os olhos tão rapidamente antes de aprová-los que acabo aprovando, sem perceber, um comentário lamentável, monstruoso, inadmissível, como o que citei acima. Um pavoroso sinal de como temos lidado com a política. Já o tirei do ar’.
Na Argentina, o diário La Nación deu destaque ao desastre aéreo em São Paulo. Sob uma de suas notícias online sobre o acidente, pôde-se ler, no fórum dos leitores, a seguinte manifestação de um suposto cidadão do país vizinho, mensagem que assim se traduz: ‘Só consigo pensar que eles ganharam da gente na final’. Essa evidente referência ao desfecho da Copa América, como razão para indiferença ou maus desejos, foi rechaçada, pouco depois, no comentário de uma possível compatriota do mente-curta em questão. Elegante, a leitora sugeriu-lhe que revisse as suas prioridades de vida.
Como reza o aforismo, ‘o papel aceita tudo’. Dá-se o mesmo com a tela do computador. No webjornalismo, mais do que o dever de deletar – recurso que sempre será tardio–, impõe-se a obrigação de checar e de triar para evitar o pior. Não custa lembrar que os meios mudam, mas o imperativo jornalístico do bom senso deve permanecer em todas as fases da produção.
De preferência, com jornalistas fazendo jornalismo.
******
Jornalista