Eu tinha acabado de concluir a graduação na ECA quando li O que é Biblioteca, escrito pelo meu professor Luís Milanesi. Um livro pequeno e essencial. Saiu pela Brasiliense, onde trabalhei por aqueles tempos. Eu me lembro bem do efeito que me produziu uma frase curta, que pareceu saltar da página para me bater na cara: ‘A imprensa no Brasil nasceu depois da censura’. (O que é Biblioteca foi lançado em 1983. Tenho aqui comigo a edição de 1985, e a frase está lá, na página 29.) Dei com aquela oração de oito palavras e tive um baque. ‘Taí’, pensei na hora. ‘Eis aqui um traço constitutivo na formação do Brasil.’ Hoje relativizo um pouco a minha primeira impressão: aprendi a duvidar dessas generalizações peremptórias e tenho mais cautela diante de conceitos por demais abrangentes como ‘o caráter nacional’. Mesmo assim, a frase ainda faz parte das minhas lembranças, por assim dizer, fortes.
Não considero que essa contingência – a censura ter aparecido cronologicamente antes da imprensa – tenha definido um pendor autoritário, para todo o sempre, no tal ‘caráter brasileiro’. De uma forma ou de outra, em quase todos os países, com exceção daqueles que viveram rupturas mais nítidas, como França ou os Estados Unidos, a imprensa e o poder tiveram de negociar espaços indefinidamente. Nem por isso, esses países fincaram pé na intolerância eterna. Portanto, não quero aqui absolutizar, de modo algum, essa particularidade brasileira. Nem se pode exagerar o peso da contingência de que falo agora, nem somos uma nação de intolerância contumaz. Mesmo assim…
A corte chega ao Rio
Vejamos um pouco mais de perto como foi essa história da censura que veio antes da imprensa. Sabemos que, antes de 1808, como colônia, as terras brasileiras não podiam hospedar nenhuma tipografia nem qualquer coisa que fosse parecida com isso. O panorama sofreu uma grande mudança com a vinda da corte portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro, em 1808. Nos primeiros meses daquele ano, a burocracia estatal da Coroa se transplantou para as praias cariocas. Com a burocracia, veio a legislação censória. Ou seja: a censura se estabeleceu aqui antes do lançamento do diário oficial de D. João (A Gazeta do Rio de Janeiro), que surgiu em setembro de 1808, e também antes do lançamento do Correio Braziliense, que saiu do prelo um pouco antes, em junho do mesmo ano.
O Correio Braziliense é considerado o marco inaugural da nossa imprensa. A Gazeta nasceu mais tarde e, além disso, era um órgão estatal e governamental, não poderia ser classificada como veículo jornalístico. O Correio, sim, era uma voz crítica e independente. Seu editor era Hipólito da Costa, uma inteligência crítica, sem a menor dúvida. Brasileiro nascido em terras hoje uruguaias, Hipólito foi viver em Portugal e, lá, exerceu o cargo de Diretor da Junta da Imprensa Régia. Sua carreira sofreu um revés em 1802, quando ele foi preso pela Inquisição, acusado de integrar a maçonaria. Para sorte da imprensa brasileira, ele conseguiu fugir das grades e se exilar na Inglaterra em 1805. Três anos mais tarde, criou o seu jornal, que se manteve até 1822, sempre impresso em Londres.
Produto do exílio
Além da censura geral, aquela que valia para todos e que obrigava qualquer publicação a ser previamente examinada pelas autoridades antes de obter permissão para circular, o Correio foi nominalmente proibido, em especial e em definitivo. O veto específico vigorou entre 1809 e 1822. Mas, graças aos préstimos do contrabando, alcançou seus leitores nestas plagas. Muitos leitores – entre os quais, o próprio rei, que impunha a lei da censura e, no recôndito das informalidades nacionais, desobedecia a si mesmo. A ambigüidade das relações entre o poder e a imprensa, aliás, nascia aí, como marca registrada desta terra.
Creio que Alberto Dines, um estudioso da vida de Hipólito da Costa, concordará comigo se eu disser que, além de nascer depois da censura, a imprensa no Brasil também nasceu no exílio. Isso mesmo, no exílio. Se não tivesse se refugiado na Inglaterra, Hipólito teria sido preso de novo. O exílio era um pré-requisito de sua liberdade. É certo que, depois, ele se recomporia com D. João, e se pacificaria de vez com o Estado brasileiro após a proclamação da independência: quando morreu, em 1823, aos 49 anos, em Londres, tinha acabado de aceitar um posto diplomático que lhe fora oferecido pelo governo brasileiro, já sob o comando de D. Pedro I. Mas isso não muda o fato histórico: foi no exílio que, ao longo de 175 números, existiu o primeiro jornal da nossa história.
Cai bem aqui uma referência bibliográfica. Então, vamos lá. O jornalista Laurentino Gomes conta essa história em 1808 (São Paulo: Planeta, 2007, p. 136). Há muito mais em A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil, de Lilia Moritz Schwarcz (São Paulo: Companhia das Letras, 2002). Além, é claro, da edição comemorativa dos 200 anos do Correio Brasiliense organizada por Alberto Dines para a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, em 2008.
Censuradinha básica – só para prevenir
Essas marcas de nascença – a censura que vem antes e o exílio como sede da redação – inseminaram a nossa cultura oficial. Não a determinaram, por favor: a relação aqui não é de determinação. Mas, sem dúvida, muito provavelmente, exerceram aí uma inspiração, uma influência. Desconfio que esse tipo de providência preventiva, como censurar por antecipação, passou a habitar o ‘piloto automático’ do poder em relação ao debate público, mesmo que depois, ali, na informalidade, a autoridade se permita afrouxar um pouco o freio. Penso nisso ainda hoje, quando vejo magistrados que atendem pedidos de impor censuras prévias a órgãos jornalísticos. Na dúvida, bem, na dúvida é melhor dar ali uma censuradinha básica. Só para prevenir. Como eu já disse, não quero aqui localizar o nosso ‘caráter nacional’, mas a permanência dessa ilusão – a de que o controle prévio sobre a manifestação das idéias seria capaz de nos abrigar em segurança e conforto – não deixa de ser um componente bem peculiar do nosso modo de viver em sociedade.
Tenho repetido – e isso me cansa um pouco, assim como há de cansar ainda mais os leitores que generosamente me acompanham – que, à esquerda e à direita, os agentes políticos desta nossa terra cultivam apaixonadamente essa ilusão. A idéia de que a comunicação social é uma ferramenta do poder – ou contra o poder – e não uma instância de diálogo entre cidadãos livres é muito profunda entre nós. Muito mais profunda do que gostamos de admitir. A obrigatoriedade de retransmissão do programa A Voz do Brasil, defendida ferrenhamente por parlamentares de esquerda e de direita, tem a ver com isso. Essa expressão, controle social dos meios de comunicação, também tem a ver com isso. Por meio dela, o velho impulso de controlar tudo volta à cena.
Amontoado de caixas pretas
Eu lembro bem – isso aconteceu um pouquinho depois da volta de D. João VI a Portugal, aconteceu ali por volta de 1980, 1990 – quando começamos a falar nesse tal de controle social dos meios de comunicação. O que é que se queria dizer com essa expressão? Era simples, claro, óbvio. Controle social dos meios de comunicação significava um regime de transparência e impessoalidade na condução dos processos de concessão de canais de rádio de televisão, pelo poder público, a particulares. Naqueles tempos, o Ministério das Comunicações era um amontoado de caixas pretas. Era impossível saber quem era dono de que concessão, por que período, com que abrangência geográfica, desde quando e até quando. Era tudo secreto. Estatal e, ao mesmo tempo, secreto. A coisa era pública, mas o controle sobre ela era inteiramente sigiloso, totalmente privatizado pelos burocratas em entendimentos promíscuos com políticos e empresários do setor (não raro, políticos e empresários do setor ao mesmo tempo). Há quem diga que pouca coisa mudou desde então. Às vezes me parece que pouca coisa mudou de fato, mas não vou agora lavar essa roupa suja uma vez mais. Sigo adiante. Estou aqui num diletantismo etimológico – não estou fazendo crítica do Ministério das Comunicações.
Naqueles tempos, falar em controle social significava afirmar o princípio de que a sociedade tinha o direito de saber e de controlar, democraticamente, os negócios de concessão, mais ou menos como a mesma sociedade controla os governantes, ao menos em parte, por meio das eleições (as eleições, nesse sentido, são uma forma de controle social sobre o exercício do poder), ou como a tramitação dos projetos de lei no Legislativo segue ritos que asseguram fiscalização e acompanhamento transparente desses projetos pelos representantes do povo e, muitas vezes, pelos cidadãos, diretamente.
Enfim, controle social queria dizer isso: controle da sociedade sobre os negócios mal explicados que se escondiam em escaninhos obscuros de um Estado opaco e labiríntico. O controle social seria a força contrária ao controle indevido da radiodifusão exercido por mãos ilegítimas e mesmo ilegais.
Pequena confusão
Mas os tempos foram mudando. Mudaram e mudaram. O sentido dessa expressão se perdeu. O significado da expressão controle social dos meios de comunicação também foi mudando, mudando, sem que a situação original contra a qual ela surgiu mudasse no mesmo ritmo. Recentemente, há quem fale em controle social querendo dizer nada menos que controle oficial sobre os conteúdos de jornais, revistas e emissoras. Isso nada mais é que censura, mas alguns passaram a entender isso aí por controle social. Dizem algo como ‘deixa que o governo de esquerda vai lá e faz um controle social em cima deles e aí eles vão ver o que é bom pra tosse’. Ora, se controle social passou a significar controle oficial do que as pessoas dizem, em blogs ou em grandes redes nacionais de televisão, estamos todos fritos – e controlados. Mas tem gente que quer precisamente isso.
Há também aqueles que acham que controle social é uma assembléia permanente dos movimentos sociais organizados, algo por aí, ditando normas sobre o que pode e o que não pode ser veiculado nos tais dos meios de comunicação. Claro, claro, com a bênção da mão bruta do Estado que herdamos de D. João. O controle social, nesse caso, virou sinônimo de controle sindical. Onde os movimentos supostamente organizados da sociedade supostamente civil dão todas as cartas, os milhões e milhões de cidadãos desorganizados estão fritos – e controlados. Mas tem gente que quer também isso, ardentemente.
Cabe à sociedade, não ao governo
Oh, pá, já escrevi muito e estou com preguiça – e a minha preguiça, toda ela, também é culpa de D. João VI. Tudo bem: é culpa, do mesmo modo, de Macunaíma e dos ensandecidos que acreditavam na essência do caráter nacional – ou na essência da falta dele. Estou com preguiça. Mesmo assim, ainda tenho fôlego de dizer que é preciso tomar cuidado.
Controle social dos meios de comunicação pode querer dizer o oposto daquilo que já significou um dia: o oposto de transparência, o oposto de impessoalidade, o oposto de liberdade. Controle social pode querer dizer mais opacidade, mais partidarismo, mais desmandos, mais cartel, mais clientelismo e mais, muito mais patrimonialismo (com um figurino sindicaleiro). Se os tais meios de comunicação não se comportam direitinho, lá vai o governo e dá uma ‘democratizada’ neles, preventivamente, aplica-lhes um ‘controle social’ na veia. É uma sandice. Em nenhuma hipótese, os meios de comunicação deveriam ser da competência de governos. O mercado da radiodifusão, sim, pode ser objeto de regulamentação, por lei, e de regulação, por agências específicas, mas a presença do governo no controle de conteúdo é, em qualquer hipótese, desastrosa. Não por acaso, num texto de 1994, sobre a democracia dos meios de comunicação, eu mesmo escrevi que ‘não se deve esperar de um governo a mudança desse quadro’ [o quadro desequilibrado de distribuição dos canais de rádio e televisão e as distorções de conteúdo que daí decorriam]. Eu dizia que a adoção de regras democráticas para o setor seria uma obra da sociedade, não do governo. E escrevi mais: ‘Seria uma utopia totalitária esperar isso de um governo.’ Pois hoje, aqui e ali, a gente vislumbra indícios de que um ou outro ainda acalentam utopias totalitárias. É tenebroso. Se controle social for isso…
Tudo é tudo e nada é nada
Mas, afinal, o que é mesmo que quer dizer essa expressão, controle social dos meios de comunicação? Não dá mais para saber. Ela foi se tornando inútil, esvaziada, morta. Cada um dá a ela o sentido que bem entende, e, quando a coisa chega nesse nível de imprecisão, a gente acaba caindo naquela filosofia de Tim Maia, na qual tudo é tudo e nada é nada.
Pelo sim pelo não, desse controle social aí, esse que quer dizer controle oficial, e também desse que quer dizer controle sindical, desse aí a democracia está fora. Um pouco de desconfiança é de bom tom. Esse discurso que posa de esquerda mesmo na boca de quadros notórios da ditadura militar – vivemos um tempo em que até José Sarney anda declarando que ‘a mídia se tornou inimiga das instituições representativas’, ele mesmo, José Sarney, cuja família é dona de um grupo de mídia nada desprezível, nada alternativo – pende mais para a autoridade que controla do que para a sociedade que critica. É mesmo bom desconfiar quando alguns agentes políticos que saem falando muito testosteronicamente em controle social pretendam apenas intimidar os críticos. Preventivamente. Não esqueçamos que, em nossa cultura de Estado, nós abrigamos a censura antes mesmo de abrigar a imprensa.
São tempos ingratos. Ninguém mais precisa ir para o exílio para criar um jornal, é verdade. É que hoje o exílio não é geográfico: ele é simbólico.
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Jornalista, é professor da ECA-USP