Nunca os problemas do meio ambiente, da economia (e, em particular, do agronegócio), bem como seus reflexos na mídia estiveram tão interligados como nesses últimos dias, durante e após a invasão de uma unidade industrial da Aracruz Celulose, perto de Porto Alegre.
As imagens e as notícias da pequena cidade de Barra do Ribeiro já percorreram o mundo: as agências européias e norte-americanas se encarregaram de divulgar a invasão das duas mil mulheres da Via Campesina, na madrugada de quarta-feira (8/3), Dia Internacional da Mulher. Até mesmo locais bem distantes do Brasil, como o Catar, já estão informados via AlJazeera.net.
Em geral, o tom do noticiário da mídia gaúcha é de condenação e indignação. O principal jornal de Porto Alegre, Zero Hora, do Grupo RBS, deu em manchete (quinta, 9/3): ‘Ação violenta do MST ameaça investimento de US$ 1,2 bilhão no RS’.
Reconhecido como o porta-voz do agronegócio no Rio Grande do Sul, o jornal Correio do Povo deu em manchete (10/3): ‘Estado rompe relações com a Via Campesina e intima líderes’. O governador interino, jornalista Antônio Hohlfeldt, declara na matéria de capa do Correio: ‘A Via Campesina não terá espaço para praticar seus atos hediondos no RS, pois será acompanhada de cima pela Brigada Militar’.
Motivo principal
Os fatos ocorreram durante a realização, na capital gaúcha, da 2ª Conferência Mundial sobre Reforma Agrária, promovida pela FAO, organismo das Nações Unidas para alimentação e agricultura, com a presença de representantes de 81 países, que debateram a questão até sexta-feira (10/3).
A manchete do Zero Hora coloca, com precisão, pelo lado empresarial, o foco de toda a questão: seriam mais de 1 bilhão de dólares que viriam para o estado, com uma nova fábrica de celulose da empresa, além de uns 50 mil empregos diretos e indiretos. E que estariam ameaçados pela invasão das mulheres camponesas.
Mas por que a invasão? Um ato de vandalismo, sim, certamente. Mas um ato que sinaliza para uma grave situação que se espalha pelos vizinhos Uruguai e Argentina. Como se sabe, grandes multinacionais européias estão construindo, no Uruguai – fábricas de celulose, as ‘papeleiras’, como dizem os ambientalistas. A reação do lado argentino, na fronteira com o Uruguai, foi rápida: barreiras de militantes verdes impedem, há dois meses, o trânsito pelas pontes que ligam os dois países.
O governo uruguaio defende as ‘papeleiras’ com o argumento divulgado, aqui, por Zero Hora: é investimento bem-vindo e proporciona os postos de trabalho tão necessários por lá.
A questão, a raiz do problema, é o eucalipto. Sabidamente, essa árvore altera o solo e afeta a biodiversidade. E, mais que tudo: agrava as secas no Sul do continente, seja no Rio Grande do Sul como no Uruguai e Argentina. Isto porque o eucalipto precisa sugar toda a água possível, em seu redor, para se desenvolver. Em apenas sete anos, por aqui, o eucalipto já oferece a fibra necessária para fabricar papel.
Talvez esteja aí o principal motivo pelo qual as multinacionais de celulose se deslocam, cada vez mais, para a América Latina para produzir aqui o produto que lá estão impedidas de fazer, em função de leis ambientais mais rigorosas.
Atos de violência
‘Eucalipto: vilão ou solução?’. Esta é a manchete de um suplemento especial do jornal gaúcho Já, de dezembro de 2005, sobre projetos das ‘papeleiras’. Em oito páginas, o suplemento já antecipava muitas das questões que, três meses após, incendeiam agora as manchetes da grande mídia gaúcha.
O suplemento resumia os debates de encontro com 200 participantes promovido pela Associação Riograndense de Imprensa (ARI) e pela Agência de Notícias Ambientais – Ambiente JÁ – no auditório da Faculdade de Medicina de Porto Alegre. Com a ausência da Aracruz – agora no centro das primeiras páginas locais –, o evento serviu para debater os projetos da Votorantim Celulose e Papel e da Stora Enzo, que vêm comprando terras no município de Rosário do Sul para o plantio de eucalipto.
Ambientalistas, acadêmicos, líderes do agronegócio e técnicos debateram a questão ao longo de todo aquele dia (30/11/2005) para chegar à conclusão apresentada pelo jornal Já: permanecem as dúvidas sobre os impactos ambientais da adoção de nova monocultura no pampa gaúcho. Houve momentos de muita tensão no debate, relata o jornal, entre os representantes das ‘papeleiras’ e os ambientalistas gaúchos.
Agora, toda esta tensão terminou contaminando a mídia gaúcha: na quinta-feira (9/3), sucederam-se notas e comentários de diretores de jornalismo no site Coletiva.Net, envolvendo fatos relativos à cobertura da invasão das militantes camponesas à unidade da Aracruz em Barra do Ribeiro.
‘Invasão da Aracruz gera estremecimentos na área da Comunicação’, informou uma manchete do Coletiva.Net. Os jornalistas das emissoras de TV Band-RS, Pampa-Record e SBT-RS acompanharam, de cima, os fatos e registram em seus noticiários.
A RBS TV ficou de fora. E não gostou. Em comunicado interno, sob o título ‘O orgulho de não dar o furo’, o diretor de telejornalismo da RBS TV, Raul Costa Jr., diz que ‘pela primeira vez’ ficou ‘feliz’ de ‘não dar antes uma notícia’. Na mensagem, o diretor da RBS TV ainda afirma: ‘Não somos confiáveis pra fazer propaganda de um crime’.
O diretor da Band-RS, jornalista Leonardo Meneghetti, rebateu em outra nota também divulgada pelo Coletiva.Net:
‘Lamento que ainda tenhamos profissionais que prefiram criticar a concorrência quando são furados. Jornalismo também se faz noticiando invasão de campo ou de empresa. E quem considera que isto é crime ou conivência mostra sinais de estar ultrapassado nas suas idéias. (…) Sonegar isto ao público é sonegar informação, e a Band não faz isso. (…) Sempre é mais fácil e cômodo criticar a vitória do concorrente do que reconhecer o erro’.
Respondendo, em uma nova comunicação, o diretor da RBS TV disse que ‘não julgou o comportamento dos concorrentes’, limitando-se a dizer que ‘as opções éticas de cada veículo devem ser julgadas pela sociedade, que retribui com audiência e credibilidade’.
Em outra nota, a editora regional de Jornalismo do SBT-RS, Cristiane Finger, diz: ‘Temos preocupação imensa com a ética e estamos chocados com o que vimos na unidade da Aracruz em Barra do Ribeiro’. Contestando versões divulgadas pelo Grupo RBS, ela revela que o SBT não foi avisado, previamente, sobre o que aconteceria:
‘Pessoalmente, recebi a informação de que algo aconteceria paralelo à 2ª Conferência Internacional de Reforma Agrária, que acontece na PUC-RS. Fizemos nossos trabalho de apuração. Nossa equipe seguiu os manifestantes da Via Campesina. Sem saber para onde e o que aconteceria’.
Antes de colocar as imagens no ar, em editorial, o SBT-RS, depois de frisar que não compactua com atos de violência, afirmou: ‘Não cabe à imprensa julgar. E sim apenas mostrar os fatos’. Para Finger, a preocupação com o ‘furo’, manifestada no comunicado da RBS TV, ‘é pura vaidade’.
Mais jornalismo
Os presidentes do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul, José Carlos Torves, e da Associação Riograndense de Imprensa (ARI), Ercy Torma, também analisaram o confronto entre os jornalistas das TVs gaúchas. Para Torves, não há nenhum problema no procedimento adotado pelos veículos que acompanharam a invasão da Aracruz. Ele entende ser legítimo o acompanhamento de ações dos movimentos sociais pelos jornalistas.
Torma afirma ao Coletiva.Net: ‘Imprensa não deve se omitir’. Mas a imprensa deveria ou não ter acompanhado a invasão?, pergunta o site. ‘Seria lamentável se ficássemos sabendo do fato sem ter nenhuma imagem’, diz o presidente da ARI. Ele acrescenta que a imprensa não cria os fatos e tem a obrigação de fazer a cobertura do que está acontecendo. ‘Foi um ato criminoso e de banditismo e a imprensa tem que tratar isso como tal’, entende Ercy Torma.
Na edição de sexta-feira (10/3), Zero Hora prossegue denunciando, em manchete de capa: ‘Ataque em Barra do Ribeiro teve origem em orientação do Exterior’. E acrescenta que haveria organizações internacionais – sem citar seus nomes – pregando a expulsão de multinacionais e o fim do agronegócio. Colunistas do mesmo jornal prosseguem, na mesma edição, na sua antiga linha de criminalizar os movimentos sociais, ‘transformados em verdadeiras empresas, com planejamento, estratégia e marketing’.
Não é segredo para ninguém: a RBS está rompida com os movimentos sociais há alguns anos. Coerente com o posicionamento pró-empresarial, seus órgãos não deveriam, contudo, tentar brigar com a notícia. Ainda mais quando os fatos ocorrem dentro de sua área de atividades. Ou se orgulhar, como diz a nota do diretor de telejornalismo da RBS, ‘de não dar o furo’. Ou ficar feliz ‘de não dar antes uma notícia’.
Como lembra o presidente da ARI, falta à mídia gaúcha – e, por que não, nacional? – mais exercício de jornalismo. O que significa: mais jornalistas fora das redações, lutando sempre pela notícia. E apurando e relatando o fato com a máxima acurácia. Seja ela uma invasão de empresa. Ou um simples buraco na calçada.
******
Jornalista