O exercício do jornalismo investigativo pode levar a opções politicamente radicais. Claro, depende do tempo, da época, das circunstâncias etc. e tal. Afinal, o ser humano é filho delas. Mudam as circunstâncias, muda o homem.
O caso de Marx é paradigmático. Na redação da revista Rheinische Zeitung, ele, então um democrata dividido pelas tensões liberais e anti-liberais/medievais, na Alemanha monárquica, na primeira metade do século 19, sob intensa influência da Revolução Francesa, partiu para a investigação jornalística sobre projeto de lei que proibia os lenhadores de catarem lenha seca nas florestas, atividade ancestral, semelhante à restinga. No final, diante das conclusões radicais a que chegou, embarcou-se no movimento que o levou ao comunismo. O jornalismo investigativo leva ao socialismo/comunismo?
A restinga – resto – do produto da natureza que serve de revitalizante da própria natureza era colhida pelos trabalhadores, cujo custo era o da organização para catar. A lei, entretanto…
Marx – como mostra Denis Collin em Compreender Marx, 289 pp., Editora Vozes – jogou-se inteiro na investigação. Descobriu o óbvio, tão difícil de ser visto: os pobres criam seu próprio direito ao se organizarem para a atividade social.
Direito do trabalho
‘É na sua atividade que a pobreza encontra já o seu direito. Na coleta [da lenha], a classe elementar da sociedade humana se afirma como fator de ordem frente a produtos da potência elementar da natureza’,
diz em sua reportagem.Conclui que o direito do pobre é o direito do trabalho de transformar a natureza que requer a ordem e a disciplina como pressupostos do direito natural. Caso contrário, não terá forças para saciar sua fome e perecerá. O poder midiático brasileiro permitiria no século 21 que Marx escrevesse nas suas páginas conclusão desse tipo?
O jornalista Marx, em 1842-43, com essa investigação e essa conclusão, de o direito do pobre ser o direito gerado pelo seu trabalho, entrou em choque com o direito positivo criado pela sociedade civil, ancorada na constituição onde se forma o direito da propriedade de maneira apenas formal. Formalismo jurídico.
A propriedade constitucionalmente formal é uma construção abstrata. O direito positivo burguês, que se fortalece com o código napoleônico, bate de frente contra o direito do trabalho, forjado como fator de norma da ação do pobre. O direito do trabalho é negado pelo direito positivo burguês. Não tem conversa.
Democracia parlamentar
Isso, bem entendido, naquele tempo, tributário das ações de Talleyrand, o diplomata da burguesia de Napoleão, quando, nas décadas de 1810/20, saqueava os derrotados monarcas, exigindo-lhes gordas gorjetas monárquicas. O poder liberal marchando sobre os escombros do mundo medieval em extinção, cobrando ouro e poder. Novos coloridos pelos choques da tese e da antítese deram novas conformações ao processo histórico social, de lá para cá, relativizando tudo.
A derrota da monarquia é a derrota da propriedade monárquica feudal. Ao ser saqueada pelas forças da democracia burguesa, que tomam as rédeas do estado monárquico, a monarquia se transforma, para sobreviver, em elo fraco do poder burguês, sujeita a novos saques, no Parlamento, tudo democrática e constitucionalmente burguês. A propriedade monárquica/feudal é transformada em propriedade privada por cima do direito ancestral do trabalho.
A sensação de que as terras do rei eram do reino (de Deus), pois, afinal, o rei tem o poder divino, chega ao final com a burguesia no poder, instaurando a propriedade privada em cima das terras do rei, do reino divinizado. Foi como a legião de Boris Ieltsin invadindo o que restou do comunismo stalinista corrupto, arrebanhando tudo, para extrair e detonar o antigo direito, a fim de, pelo roubo, fixar a nova legislação, a nova restauração burguesa. Por isso, as burguesias têm tanto medo das assembléias constituintes, dos plebiscitos etc. Balançam a democracia parlamentar, expressão e representação do poder burguês.
Materialismo objetivo
Marx chega, naturalmente, ao seu veredicto jornalístico-jurídico-filosófico: há dois direitos. O direito do pobre – o real, extraído da relação com a natureza, ou seja, o direito natural, o direito do trabalho como fator de ordem – e o direito do rico, o direito positivo, abstrato, fictício.
A grande mídia brasileira no século 21 admite esse tipo de discussão que rola nas páginas dos jornais e revistas do primeiro mundo desde a primeira metade do século 19?
A ficção domina, pela propriedade, pelo formalismo jurídico do direito positivo, o real. O trabalho, o sujeito, subordina-se ao anti-trabalho, ao objeto, e por ele é dominado, obrigando-se a render-lhe homenagem, aceitando sua diminuição como ser em si, por si e para si, para se transformar em ser para os outros.
Alienação fantástica, que, aliás, permeia a cabeça neoliberal nas redações em franca decadência no momento em que a ficção monetária – que animou a economia capitalista keynesianamente no século 20 – vê abrir sob seus pés a derrocada do dólar sem lastro, que vai deixando de ser referência internacional.
Claro, Marx, impulsivo diante da armadura constitucional monárquica alemã reacionária e do confronto dos dois direitos, opta pelo movimento que o levará ao comunismo. O jornalismo investigativo – a ida à raiz, radicalidade, do problema – é a causa principal que o impulsiona ao extremo radicalismo. Criou, pela observação e investigação, a base de sua filosofia, o materialismo objetivo, que vai confrontar com o materialismo subjetivo dos neo-hegelianos de sua geração.
Milagre, às vezes, acontece
‘Se é a atividade dos pobres que constitui agora o fator de ordem da sociedade inteira, isto significa que Marx já rompeu com os pressupostos do idealismo filosófico e jurídico dos quais os próprios pensadores radicais estão penetrados’, destaca Denis Collin, excelente texto.
A conclusão de Marx representa seu rompimento brusco com o jurisdicismo imperial-constitucional alemão e, também, com a filosofia alemã, que se emancipou na idéia antes de experimentar a prática.
A filosofia teria que se emancipar da idéia, do espírito, para a prática, a matéria, a fim de negar o direito subjetivo, pensado, racionalizado, a priori, como conceito, sobre o direito do trabalho.
O autor de O Capital alcançaria aqui, a partir da investigação jornalística, os pressupostos da construção do seu materialismo dialético, em contraposição ao idealismo dialético de Hegel. As controvérsias sobre esse assunto são infindáveis.
Seria muito interessante que uma Caros Amigos, por exemplo, recuperasse essa reportagem de Marx, para oferecer aos seus leitores. Como esperar uma iniciativa nesse sentido por parte de O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo? Milagre, às vezes, acontece, quem sabe?
A etapa ultra-financeira
Seria uma aula sobre o que o levou à crítica da economia política burguesa, também, sustentada no direito positivo da propriedade como formalismo jurídico, e não fruto do trabalho humano que se transforma em fator de ordem para produzir o direito do trabalho, o direito do pobre.
Uma das obsessões dos economistas clássicos e neoclássicos é, sempre, a de negar o valor-trabalho, do qual Adam Smith partiu para escrever A riqueza das nações.
A burguesia teria mais tarde que pagar um tributo a Marx. A insuficiência de consumo no capitalismo, diagnosticada por ele como o roubo elementar que a propriedade representa em si, em sua preponderância, como direito positivo, sobre o direito do trabalho, o fictício sobre o real – algo dito também por Proudhon – somente seria superada com a social-democracia como forma de a burguesia entregar os anéis antes de perder os dedos, caso vingasse o comunismo.
E tome guerras, impulsionadas por moedas fictícias sem lastro para sustentar a ordem positivista, mecanicista, liberal, neoliberal e, agora, neo-neoliberal, em que o capital financeiro se basta na sua reprodução, descolando-se das próprias forças produtivas.
Não é preciso haver trabalho para a reprodução do capital na sua etapa ultra-financeira neo-neoliberal. O trabalho, sob o capitalismo financeiro, transforma-se em estorvo para o capital, como destaca Rifkin, em O fim dos empregos.
O poder midiático-bancocrático
A distribuição da renda no Brasil, nos últimos anos, mediante avanço dos investimentos sociais para bombar o consumo interno como forma de livrar os empresários dos estoques acumulados, que exigiam desvalorização cambiais hiperinflacionárias recorrentes, ainda não foi entendida pela burguesia nacional, cuja cabeça está nos editoriais da grande mídia. Não perceberam que é a salvação do próprio capitalismo, ameaçado pelo subconsumismo que a sobreacumulação de capital provoca.
Os juros não caem no Brasil para o patamar civilizado porque ele ainda é a expressão real da brutal transferência de renda dos pobres para os ricos. Quando ela começa a ser atenuada pelo crédito direto ao consumidor, levanta controvérsias político-ideológicas incríveis. Estas, tão somente, demonstram que o capitalismo na periferia dificilmente consegue ultrapassar sua fase juvenil, para, em seguida, cair na falta de opções por não ter desenvolvido seus mecanismos de reprodução sob social-democracia. Talleyrand se sentiria bastante à vontade no Brasil de hoje…
Até quando? Vai precisar de muito espírito jornalístico investigativo dialético para produzir os verdadeiros pressupostos do entendimento sobre como deve ser conduzida a transformação social no Brasil. Afinal, jornalismo investigativo é educação pura, extraída do relato da realidade. Como a realidade tornou-se meramente virtual…
Talvez a solução seja a internet e a liberdade que ela abre para o debate, livre das amarrações impostas pelo poder midiático bancocrático. Os relatos de Carlos Castilho, no Observatório da Imprensa, dando contas das experiências em curso, são uma esperança.
Documentário sobre a restinga
Se predominar a visão midiática, parcial, anti-investigativa, principalmente, da realidade econômica nacional, a partir do absurdo da preponderância radical da ditadura da propriedade sobre o trabalho, é perfeitamente previsível possível corrida de sangue.
A expropriação brutal via seqüestros, roubos, assaltos, associados ao crime organizado em escala crescente, não seria resposta ao direito positivo que nega o direito do trabalho aos miseráveis que caem nas malhas dos traficantes?
Os editoriais do Estado de S. Paulo, nesses dias em que o MST invade propriedades, são puro sangue. Não têm suficiente capacidade para ir a fundo na discussão do problema. Atuam como os editorialistas da grande imprensa alemã, monárquica, nos anos de 1840. Sequer o direito da restinga, do resto do resto, ela admite reconhecer.
O que são os Sem Terra senão os que foram expulsos da propriedade, a mendigar sobrevivência estatal, sua restinga moderna, mediante organização social agressiva?
Em documentário sobre a restinga, Agnès Varda mostra como os pobres europeus conseguiram pelo menos o direito do resto da colheita dos ricos, que Balzac descreveu maravilhosamente em seus romances em que a construção do direito positivo se faz à custa de expropriações dos pobres sob os auspícios do código napoleônico.
Juros estratosféricos
No Brasil, o direito do resto não existe, ainda. Os tempos são outros, social-democratas, mas a legislação ainda não atacou o fantasma da fome com o direito de consumo para o ser humano, seja ele de que categoria social for, como destaca o empresário Sebastião Gomes.
Quando o ser humano não presta para mais nada, diz ele, ainda tem um atributo para o capital: ele consome. E ao consumir, movimenta a demanda. Se nem a restinga o capitalista brasileiro deixa prevalecer em forma de direito do pobre, como evitar que se ampliem os movimentos sociais radicais?
O programa Bolsa Família é isso aí: a restinga. Se não fossem os investimentos sociais, os assaltos e o apoio ao MST seriam mais intensos e a revolução nos grandes centros e no campo estaria explosiva, incontrolável.
Os estoques de mercadorias da burguesia industrial estariam bombando, sem consumidores internos, exigindo desvalorizações monetárias que se traduziriam em inflação explosiva. No contexto do elevado endividamento, sem consumo… revolução na certa.
O MST garante sua restinga com o dinheiro público. Legal? Certamente, questionável. Mas, e a restinga gorda dos banqueiros, empanturrando-os nos juros estratosféricos em cima da dívida pública interna, tocada a moeda fictícia, que dá sustentação ao direito positivo cuja expressão é a negação do direito do trabalho, como é que fica? Legal? Direito do rico versus direito do pobre.
Sobreacumulação e subconsumismo
Nessa bola dividida, os editorialistas do poder midiático não entram, ficam na lateral do campo, na algaravia, ditando regras incapazes de influir no jogo pesado. Puro formalismo contra o direito de quem busca a bola dentro de campo para fazer o gol.
O direito positivo de cobrar juros sobre a moeda fictícia, que dá enfeite ao formalismo fetichista monetário da propriedade positiva sobre o direito do trabalho, eis um assunto do qual a mídia foge desabaladamente.
Não ousa sequer admitir pensar em avaliar, quanto mais comparar, para relativizar o direito positivo com o direito comparativo para concordar – ou não – com o direito do trabalho.
Mas, se ela trata como santo o dinheiro do capital financeiro, por que trata como diabo o dinheiro estatal, que banca o consumo dos miseráveis?
Não é este que está dando nobreza ao lucro do nobre, com a economia crescendo graças ao avanço do mercado interno, que bomba os anúncios publicitários no jogo da concorrência?
‘O dinheiro do pobre faz o nobre, mas o dinheiro do nobre não faz o pobre’ (Sebastião Gomes).
Se não é o governo entrar para arrefecer a sobreacumulação que provoca o subconsumismo, a revolução poderia estar nas ruas, enchendo-as de sangue. Se não sobra nem a restinga para os pobres nas relações capitalistas no Brasil…
A armação conservadora
A economia política, para alterar essa situação, teria que partir do homem com barriga cheia, para garantir seu desenvolvimento em relativas igualdades competitivas. Parece que é isso que Mangabeira Unger está pregando. Evoluirá diante dos juros de Meirelles?
É isso – a barriga cheia, pelo menos – que pregam os críticos da economia clássica, como Malthus, Marx e Keynes, incrédulos em relação à capacidade da eficiência capitalista, no livre mercado, dispor de condições de distribuir a renda, salvo se for socorrido pela ineficiência do Estado em forma de aumento dos gastos públicos. Homeopatia dialética – eficiência/ineficiência.
A restinga brasileira são as sobras que a burguesia acumula mas não distribui. Torna-se necessário ser expropriada pelo governo em forma de carga tributária e juros altos para garantir o consumo popular sem o qual os capitalistas voariam pelos ares, especialmente, quando o Banco Central acumula especulativamente dólares para combater a inflação, via juros altos, impondo, incompreensivelmente, deterioração nas relações de trocas entre o capitalismo nacional e internacional. Maquiavelimo anti-capitalista. Genialidade bancocrática.
Persiste o dilema e o temor do poder midiático: os que têm dinheiro na pessoa jurídica conseguem escapar, repassando para os preços os custos tributários e financeiros, mas e a restinga do pobre, quem vai garantir?
Caso contrário, outro operário, mais radical que Lula, pode atrapalhar a armação conservadora.
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Jornalista, Brasília, DF