O argumento de que a corrupção na Petrobras não começou na era Lula é ao mesmo tempo verdadeiro e infame. O fato de ser verdadeiro mostra como a mídia jornalística anda com vista curta, por ser incapaz de enxergar eventos e processos em perspectiva: sim, é verdade que a roubalheira na empresa começou muito antes, e isso precisa ser informado. A roubalheira de hoje – que suscita acusações a integrantes dos partidos aliados PT, PMDB e PP – não pode ser devidamente compreendida sem contextualização.
A face inaceitável do argumento desdobra-se em duas vertentes: a primeira, e mais notória, é haver tanta corrupção com o PT no poder. Quem acreditava na pureza do partido de Lula se decepcionou, para dizer o mínimo. A segunda vertente, ainda não muito bem percebida, é que, se a corrupção é coisa velha no Brasil, antiquíssima, o Brasil não é mais o mesmo, 30 anos depois de uma das maiores mobilizações de massa da história, a campanha das Diretas Já, 25 anos após o início da vigência de um regime democrático constitucional e 16 meses após a explosão nas ruas em junho e julho de 2013.
O país não está mais tão mansinho em face das estripulias dos poderosos. Se ainda os serviços públicos essenciais fossem de qualidade tolerável…
Para se ter ideia das décadas mais recentes de corrupção e turbulência na estatal, recue-se até o governo Sarney. Numa edição dominical do Estado de S. Paulo (4/12/1988), Aluizio Maranhão e Suely Caldas apresentam, em página inteira (aqui retalhada), o que chamaram de “Tiroteio na Avenida Chile”.
A presidência e o Exército
O escândalo envolveu um general da ativa, Albérico Barroso Alves, indicado pelo presidente da República para a Diretoria Industrial da Petrobras. Isso levou um editorial do Estadão, datado do dia 18 do mesmo mês, a questionar: “Não se sabe se a solução dada ao escândalo da Petrobrás Distribuidora (BR) atinge mais o presidente da República ou o Exército.”
Deixemos que falem alguns parágrafos da reportagem:
Era um tempo em que banqueiros se mobilizavam para denunciar extorsões…
Para os nostálgicos de uma ditadura que não viveram, esclareça-se que a presença de oficiais-generais na lista de presidentes da Petrobras é amplamente majoritária, senão exclusiva, até a nomeação do advogado Shigeaki Ueki para o cargo pelo general-presidente João Batista Figueiredo, em março de 1979. Ueki fora o ministro de Minas e Energia do general-presidente Ernesto Geisel (1974-79), que havia sido presidente da Petrobras no governo do general-presidente Emílio Médici (1969-74).
Dilma sabia
Em resumo, a situação da estatal não sofreu nenhuma reforma substantiva de métodos de gestão durante os governos subsequentes: Collor, Itamar, Fernando Henrique e Lula. A presidente Dilma disse em entrevista na Austrália (Valor, 17/11) que o escândalo da Petrobras vem de algum tempo e que nada daquilo lhe era tão estranho.
Usou a primeira pessoa do plural, o que pode significar “nós, no Palácio”, ou ela e o ministro das Minas e Energia, Édison Lobão, ou ela, Lobão e a presidente da empresa, Graça Foster, ou só ela e Graça. E seguiu Dilma: “Nós não sabíamos as pessoas concretas. Mas a investigação, nós sabemos dela”.
Não é bem assim. Pouco tempo depois de tomar posse, em fevereiro de 2012, antes de haver investigação sobre malfeitos, Graça Foster, pessoa da mais estrita confiança da presidente, desmontou a Diretoria Internacional da Petrobras, ocupada por Nestor Cerveró, o primeiro dirigente da petroleira que viria a ser indiciado pelas autoridades judiciárias.
Graça sabia – quem na empresa não sabia? – da existência de tenebrosas transações. Tentou desmontar o esquema sem alarde. Não funcionou. E se Graça sabia, Dilma sabia. Como, aliás, é sua obrigação. Ela não foi eleita para ignorar o que se passa sob seu mando. Se sabia, brota a pergunta: por que não agiu com firmeza? Cerveró, como informou Graça no Congresso, foi “punido” com transferência para a Diretoria Financeira da Petrobras Distribuidora. Parece piada.
Um reduto
O que explica a dificuldade que Dilma e Graça encontram para agir é que a Petrobras foi ocupada desde o início do governo Lula por um condomínio que, basicamente, junta um partido estruturado, o PT, e dois grupos políticos dedicados, em grande parte, a locupletar seus integrantes, o PMDB e o PP.
A turma dos dois partidos “tradicionais” não está preocupada nem com retórica, nem com os destinos da empresa, a não ser naquilo que diz respeito a suas benesses. Mas o comando da empresa está dividido entre saudosos de José Sérgio Gabrielli, ex-presidente da Petrobras umbilicalmente ligado a Lula, e defensores de Graça Foster, dilmista considerada por esses uma pessoa competente e séria. E tida pelos primeiros como uma executiva empenhada em destruir a herança de Gabrielli.
Bufunfa gigante
Subjacentes a convicções proclamadas movem-se interesses bem mais concretos. O primeiro é que na Petrobras, segundo informações de pessoas conhecedoras do assunto, se joga dinheiro pelo ralo. E é muito dinheiro. O Estadão falava em 20 milhões de dólares de movimentação diária de recursos da Petrobras Distribuidora, 24 anos atrás. Imagine-se quanto será essa soma hoje. E ela é menor do que a movimentação da empresa-mãe.
A segunda ordem de interesses é corporativa. Brande-se como motivação das críticas à gestão da Petrobras a hipótese de sua privatização, o que representaria a perda de benefícios funcionais de todos conhecidos no mercado de trabalho.
Em meio ao tiroteio, o corpo técnico da empresa, que não é necessariamente nem petista, nem lulista, nem dilmista, nem peemedebista, nem pepista, se sente vilipendiado e humilhado. Como acontece sempre nesses casos, a patuleia não faz distinção entre “bons” e “maus” e começa a tirar sarro de qualquer funcionário da empresa.