A soma rápida dos mais votados para a Câmara Federal no Rio de Janeiro dá – só com os votos dos candidatos apoiados pelos segmentos neopentecostais – algo em torno de 4,7 milhões. Minha matemática leva em conta as candidaturas que, de uma forma ou de outra, possuem a militância das igrejas, o que tenho chamado de ‘candidaturas ungidas’. Esses candidatos obedecem a uma lógica de disputa que está no cerne do neopentecostalismo. Se fora do período eleitoral os fiéis deste segmento disputam com o próprio demônio a quantidade de almas que vão conseguir salvar do inferno, nas eleições eles disputam com a sociedade a quantidade de ‘homens de Deus’ que vão conseguir eleger.
O interessante é que este procedimento não é subjetivo. Ele é calculado e compreendido como uma das práticas de louvor. Não calculei os votos do candidato do pastor Marcos Pereira, um dos ídolos deste segmento, ao Senado (o ex-pagodeiro Waguinho), que teve mais eleitores que o Milton Temer (PSOL) – figura das mais respeitadas no cenário político fluminense – porque é possível que ele tenha sido a segunda opção de muitos religiosos que elegeram o senador Marcelo Crivella. É verdade que fiz a contagem mais fácil – apenas os votos de deputados federais e senador eleitos – considerando apenas os partidos e candidatos sustentados por essas igrejas. Sim, mas o que esse montante de votos, quase a metade dos 11,6 milhões de eleitores, do terceiro maior colégio eleitoral do país, mostra ou pode significar?
Muito além da prática religiosa
Primeiro é preciso posicionar o que se entende por neopentecostal: segmento religioso que, baseado na Teologia da Prosperidade, mistura a doutrina mosaica (as Leis de Moisés, abolidas pelo nascimento de Jesus), passagens aleatórias do Novo Testamento e uma quantidade extraordinária de comunicações com o Espírito Santo – seja por profecia, glossolalia (falar em línguas) ou sonho –, além de uma notável produção de bispos e apóstolos. Esse segmento – que cresce acintosamente no país – não possui, assim como os cristãos tradicionais, uma doutrina histórica, calcada nos ideais protestantes da Reforma.
O prefixo ‘neo’ significa novo. No caso dos neopentecostais, pode também significar oposição e/ou desacordo aos segmentos chamados evangélicos ou cristãos tradicionais. É um fenômeno ao mesmo tempo intrigante – por seu crescimento em número de templos, veículos de comunicação e representantes políticos –, mas que pode ser explicado como a esperança de solução messiânica para os vários problemas sociais (violência, drogas, falta de acesso a educação, saúde etc.) das periferias. O neopentecostalismo, sob este ponto de vista, é um dos resultados do abandono estatal em diversos setores da sociedade. Neste sentido, as igrejas assumiram um papel social que vai muito além da prática religiosa e dos estudos litúrgicos.
Rumo a um Estado teocrático?
O problema é complexo, apesar do raciocínio ser aparentemente simples. Milhares e milhares de pessoas – mas não só as desassistidas e excluídas – colocaram seus patrimônios, consciências e resolução de conflitos pessoais e sociais nas mãos de um representante e escolhido divino: o pastor. Desta forma, as soluções para o desemprego, o tratamento aos alcoólicos e drogados, a falta de acesso a hospitais e escolas públicas ou a crise econômica do Estado também dependem de uma ação divina (um milagre em potencial) orientada e – quase sempre! – ditada por um deus que se comunica diretamente com seus ‘escolhidos’ através do Espírito Santo. Assim, nos atrevemos a entender que apenas os políticos ‘abençoados’ pelo pastor (bispo ou apóstolo) de uma igreja podem resolver problemas de ordem tão mundana. Para esses seguidores, somente os políticos religiosos – os homens de Deus – têm a ‘missão’ de cuidar dos interesses da população. Engraçado é que a sensação que se tem é a de que Deus e o diabo já se retiraram – por vergonha! – dos bastidores da política eleitoral há tempos.
Será que o resultado das eleições no Rio, que dá a religiosos o direito de defenderem na Câmara Federal suas concepções – que incluem, necessariamente, suas visões de mundo e projetos de poder –, expressa a pluralidade de valores e necessidades de todos os segmentos da população? As relações entre partidos políticos (que querem os votos dos segmentos religiosos, em especial os dos neopentecostais) e igrejas não ferem o princípio constitucional do Estado laico? Será que tamanha organização para disputar almas e votos quer dizer mais que simplesmente uma necessidade sincera de louvar a Cristo? Por que outras religiões – ou grupos sociais – não conseguem (ou até nem querem) ter maioria nas bancadas e representantes políticos?
Alguns setores da sociedade defendem que, com o advento dos neopentecostais, caminhamos para um Estado teocrático. Outros, que se utilizam da temática da liberdade religiosa, acreditam que é apenas uma composição de forças. Assim, o Rio de Janeiro caminha para definir o segundo turno das eleições presidenciais. Dúvidas?
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Jornalista