Para os seus leitores, o Estado de S.Paulo parece que jamais mudou. E, no entanto, em meados de março passou por uma reforma radical. A Folha de S.Paulo foi reciclada há pouco mais de dez dias e já não provoca qualquer frisson apesar do negrume das fontes usadas na titulação. A única trepidação vai por conta da revista dominical cuja reapresentação está marcada para o domingo (6/6). Já o Globo, com suas mexidas pontuais e a promessa de continuar a fazê-las, mantém algumas expectativas.
Como dizem os portugueses, tudo como dantes no quartel de Abrantes; ou os franceses, com mais graça, ‘plus ça change, plus c´est la même chose’. O Estadão fez uma sucessão de lipos, a Folha encheu-se de botox, ambos enfeitaram-se com tatuagens e unhas escarlates. Porém, continuam iguais ao que eram.
Não se aproximaram da web, não a potencializaram nem a substituíram, usam-na como um crachá que depois de usado guarda-se no bolso. Circulam em cidades que não conhecem, não sabem cobrir e na realidade detestam.
É traiçoeiro o alarde em torno das ‘novas fases’ de veículos jornalísticos – tal como a placa ‘sob nova direção’ exibida em restaurantes. Admite-se que a fase anterior era falha e registra-se a confissão que isto só foi percebido agora. Se a novíssima Folha proclama que ficou mais legível, seu leitor não teria direito a uma indenização pelo constante desgaste dos seus belos olhos nas fases anteriores?
Tudo isso agrava a percepção de transitoriedade e precariedade de um produto/processo intrinsecamente efêmero, intermitente, movediço e cuja única força consiste em parecer sólido, inabalável.
Reestruturação radical
Ao assemelhar-se e assumir-se como uma das bolhas que sacodem o nosso cotidiano, imprensa perde a sua singularidade e sua condição de fura-bolha. Fantasiada, não tem credibilidade para avacalhar o baile a fantasia. O que hoje se convencionou designar como mudança – em qualquer campo – não passa de enganação, blefe, aldrabice.
A sociedade dita pós-moderna não produziu os estímulos intelectuais, nem fabricou os talentos, muito menos a credibilidade para processar qualquer alteração mais significativa e drástica em nossa civilização. Isso só seria possível se os seus instrumentos de comunicação não se deixassem seduzir pela dissipação e pela banalidade.
O atual transformismo da imprensa tem algo de travestismo, empulhação. Nenhuma das reformas dos jornais brasileiros – exceto talvez a do Jornal do Brasil, em 1956 e da Folha, em 1975 – conseguiu ir além da cosmética. Mesmo ao adotar o formato tablóide contentaram-se em encolher, incapazes de explorar os atributos do jornal-revista.
Design não é tudo: o Correio Braziliense ganhou inúmeros prêmios quando foi dirigido por Ricardo Noblat e se impôs num cenário jornalisticamente medíocre como o de Brasília. Noblat foi afastado e o milagre evaporou-se.
Nenhum dos redesenhos dos últimos 20 anos conseguiu corrigir os excessos da cadernalização, do seccionamento e da fragmentação dos respectivos jornais. O projeto exigiria um pesado investimento no parque gráfico de modo a imprimir cadernos com mais páginas, mais cor nas páginas internas, e, com isso, permitir anúncios coloridos em todo jornal e não apenas nas capas de cadernos. Um jornal menos seccionado, integrado e integral, seria mais fácil de manusear, mais rentável e mais efetivo como transmissor de conhecimentos.
Onde encontrar executivos e empresários dispostos a arriscar-se numa reestruturação tão necessária e radical? Mais fácil produzir a cada par de anos uma bolha badalada, logo assimilada e esquecida.
Opinionismo e antijornalismo
A verdadeira vantagem competitiva da mídia impressa é a sua capacidade de fornecer juízos e formar opiniões. O rádio e a TV dependem da voz e da figura humana, incapazes de ser institucionais. Jornais são capazes de formar gerações inteiras, estabelecer valores e dar sentido a uma comunidade ao longo de décadas.
A internet, em qualquer de seus formatos, no máximo dá palpites que substituem os palpites anteriores. Não tem condições de fixar uma convicção ou um sistema de idéias minimamente concatenado. E isso se comprova através da durabilidade e intangibilidade das páginas de opinião dos jornais que resistem incólumes ao rolo compressor das repaginações.
Esta surpreendente resistência do material opinativo impresso – nele incluídos os editoriais, cartas dos leitores, colunas assinadas, análises e textos de apoio – tem sido utilizada de forma insuficiente e equivocada. O contraditório foi eliminado, só se manifesta artificialmente quando o jornal escolhe uma questão – geralmente inofensiva – e designa dois contendores para discuti-la.
Os colaboradores se diferenciam uns dos outros por meio das suas especializações. As controvérsias se mantêm no nível epidérmico, não representam visões de mundo efetivamente antagônicas. A defenestração do economista Paulo Nogueira Batista Jr. do quadro de colaboradores da Folha pouco antes da espalhafatosa reforma é a prova do distanciamento da grande imprensa brasileira dos padrões de pluralismo vigentes nos EUA e Europa.
Para disfarçar este venerando exclusivismo inventou-se um paliativo: substituir a diversidade (ideológica) pela quantidade de nomes escolhidos na mesma trincheira. Quem inventou o truque foi o Estadão, ao colocar na sua prestigiosa Página Dois uma miríade de colaboradores de alto nível escrevendo com intervalos de 15 ou 30 dias.
Trata-se do mais puro antijornalismo: o espaçamento anula qualquer contato do articulista com a atualidade e amortece seus vínculos com o leitor. Não obstante, a fórmula foi adotada em grande estilo na reforma da Folha, que instalou um colunário ao longo do jornal inteiro com um fabuloso plantel de 101 celebridades – 29 novas. Quantos poderiam concorrer e ganhar o Prêmio Camões, como o poeta e também colunista Ferreira Gullar?
O jornal do futuro por enquanto parece tapeação de marqueteiros, já que os jornalistas ainda não se animaram a identificar e valorizar as fórmulas de sucesso do jornalismo do passado. O que falta aos jornais antes de se transformarem em matéria-prima de confete e serpentina é lembrar de que já foram imprensa.
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