Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornal desqualifica Comissão da Verdade

A Folha de S.Paulo se tornou cautelosa com seus editoriais reacionários, depois que alguns deles tiveram o efeito de devastadores bumerangues – o da ditabranda, por exemplo, foi um dos piores tiros pela culatra que um jornal já deu. Então, para ajudar seus antigos parceiros a se livrarem do merecido opróbrio, como já se livraram da merecida prisão, o Grupo Folha agora recorre a uma enrolação um tantinho mais sofisticada para desqualificar a Comissão da Verdade:

“…Não cabe a um organismo indicado pelo Executivo (…) estabelecer ‘a Verdade’, com ‘V’ maiúsculo, neste ou em qualquer assunto que seja.

“…É irrealista supor que, no exíguo prazo de dois anos, uma comissão de sete membros e 14 auxiliares, como estabelece o projeto, venha a levantar todos os casos de violação aos direitos humanos.

“Em que medida (…) estariam contemplados representantes e defensores do próprio regime militar? Sua presença, não é exagerado supor, traria dificuldades e entraves ao trabalho da comissão. Sua ausência, por outro lado, abriria o flanco a acusações de parcialidade nas investigações.

“A Comissão da Verdade cumpriria melhor seu papel, a rigor, se estabelecesse as condições mais amplas possíveis para o acesso dos cidadãos a documentos do período.

“Investigações independentes, feitas por organizações, pesquisadores e jornalistas sem vínculos com o Estado, constituem no melhor mecanismo para se chegar mais próximo de um ideal nunca definitivo, a verdade histórica. Esta não é monopólio de nenhum colegiado oficial, por mais imparcial que seja.”

Sem punições

Esta racionália infame parte do pressuposto de que haveria duas versões em pé de igualdade a serem levadas imparcialmente em conta: a dos torturados e a dos torturadores. É a tese do DEM, partido que remonta à antiga Arena, avalista de atrocidades e genocídios. No entanto, a civilização adota critérios bem diferentes. Começando pela ONU, que recomenda aos países saídos de ditaduras a apuração rigorosa dos crimes cometidos pelos déspotas e seus esbirros, a punição exemplar dos responsáveis, a indenização das vítimas e a criação de mecanismos institucionais que dificultem a recaída nas trevas.

O Brasil, a rigor, não fez nem metade da lição de casa. Concedeu reparações aos torturados, lesionados física e psicologicamente, estuprados, prejudicados em sua carreira e em todas as esferas de sua vida. Mesmo assim, sob uma enxurrada de ataques falaciosos das viúvas da ditadura, de seus discípulos e dos seus bobos úteis. A apuração dos crimes só se deu em termos de reconhecimento e quantificação de direitos gerados para as vítimas ou seus herdeiros, por meio das comissões de Anistia e de Mortos e Desaparecidos Políticos.

Punido, nem o pior dos carrascos foi. Zero. Com a omissão do Executivo e do Legislativo. E com a cumplicidade da mais alta corte do país, que produziu em abril/2010 uma das decisões mais escabrosas de sua história, fazendo lembrar os juristas franceses da República de Vichy, que colaboravam com os nazistas (vide o ótimo filme de Costa Gavras, Seção Especial de Justiça).

Acerto de contas com o passado

Os antídotos ao golpismo também foram descurados. Tanto que a caserna continua sendo até hoje uma espécie de quarto poder e apita mais do que os outros três em determinados assuntos – como o de passarmos ou não a limpo o festival de horrores dos anos de chumbo. Seu veto à revogação da anistia que os verdugos concederam previamente a si próprios em 1979 garantiu a impunidade eterna das bestas-feras do arbítrio. E sua resistência ao resgate e exposição da verdade é que está levando aos contorcionismos ridículos e concessões absurdas que marcam a gestação da Comissão respectiva.

A saída da ditadura pela porta dos fundos em 1985, mediante conluio da oposição com situacionistas que abandonaram a canoa furada para se manterem no poder (Sarney à frente), impediu que houvesse uma verdadeira redemocratização do país e nos legou a situação anômala que nos faz motivo de pilhérias no mundo civilizado. Estamos sendo os últimos e os mais tímidos no acerto das contas com o passado infame.

Embates do presente e do futuro

A Comissão da Verdade, que em suas linhas mestras fui dos primeiros a defender, é a última chance de deixarmos estabelecido, como veredicto oficial do Estado brasileiro, o repúdio ao golpismo, à ditadura, ao estupro dos direitos humanos. Caso contrário, os totalitários continuarão podendo alegar impunemente que em 1964 foi dado um contragolpe preventivo e que ambos os lados cometeram excessos equivalentes durante os anos de chumbo. E nada vai impedir que se batizem ruas e praças com os nomes de sérgio paranhos fleury, emílio garrastazu médici e outros que tais (as minúsculas são intencionais).

É discutível que se consiga avançar muito, com mais de um quarto de século de atraso e depois da diligente destruição de arquivos por parte de quem tinha esqueletos no armário, no esclarecimento de episódios ainda obscuros. Mas, apenas reunir o que já se apurou numa espécie de balanço final do período já dará aos democratas um trunfo poderoso nos embates políticos do presente e do futuro. Pois, a esta altura, só nos resta tentarmos criar anticorpos para que nunca mais o Brasil mergulhe nas trevas tirania e da barbárie.

Nem isto o jornal da ditabranda admite.

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[Celso Lungaretti é jornalista, escritor e ex-preso político – http://naufrago-da-utopia.blogspot.com]