Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo com um pouco de hipocrisia

Esta breve reflexão é motivada, assumidamente, por três hipóteses aparentemente pouco confiáveis e um incômodo cheiro de hipocrisia e diz respeito às reportagens da revista Veja e do dominical Fantástico, da Rede Globo que, de alguma maneira, acabaram levando de volta à prisão Suzane Ritchtofen, acusada de ter assassinado os próprios pais, com a ajuda do namorado e o irmão dele. O caso, pelo menos um pouco, faz lembrar Janet Malcom e seu O jornalista e o assassino.

O livro conta a história do capitão Jeffrey MacDonald, que mata a mulher e duas filhas e, depois de sentenciado, decide contar sua história para que fosse escrita por um jornalista, Joe McGuinniss. Depois de publicado o livro, MacDonald se sente traído e mal retratado pelo jornalista e vai à Justiça querendo reparação. O processo se arrasta. Joe McGuinniss também decide contar sua história e o faz a Janet Malcom, que acabou escrevendo um livro a respeito, mostrando como o jornalista abordou inadequadamente a fonte e fez-lhe promessas que jamais pensara em cumprir. A grosso modo, pode-se dizer assim, Janet Malcom foi para McGuinniss o que este último foi para o assassino da própria família.

Ambos os episódios contribuem para uma importante reflexão sobre as expectativas que repórter e entrevistado possuem em relação um ao outro, promessas que não devem e não podem ser feitas mas, principalmente, sobre a clareza que se deve ter sempre em relação à natureza e limites éticos da relação jornalista/fonte/entrevistado.

Primeira hipótese: ruptura do acordo inicial. Não importando de quem tenham partido a idéia e iniciativa da entrevista, o certo é que ela era de muito interesse para a Globo e para os advogados de Suzane. Para a Globo, em função da exclusividade na TV, a oportunidade de uma entrevista com a jovem rica, que participou de um crime que chocou o país. Jornalisticamente, uma pauta e tanto. Para Suzane e seus advogados, a possibilidade de Suzane, perante a opinião pública, passados dois anos da morte dos pais, mostrar-se menos ‘perversa e monstruosa’.

Até aí, tudo, fundamentalmente, legítimo. No entanto, em algum momento da entrevista – numa história longe de ter protagonistas ingênuos – esse acordo se rompeu. Suzane e advogados se equivocaram ao imaginar que, no acordo, estivesse previsto que ali estaria um repórter para, apenas, dar forma a sua versão e sentimentos sobre o que aconteceu e que está lhe acontecendo. A jovem e seus advogados carregaram na dose e partiram para um show de interpretação de baixíssima qualidade. A moça mais parecia uma atriz medíocre fazendo testes para o programa Malhação.

Cheiro incômodo

Segunda hipótese: ruptura de papéis. Ao optar pela encenação, ou pelo menos, pela tentativa de encenação, Suzane enveredou pelo perigoso caminho da essência da narrativa jornalística. Quis ser roteirista, protagonista e dirigir um enredo cujo controle nunca esteve em suas mãos. É fato que, no momento do procedimento da entrevista jornalística, repórter e entrevistado se transubstanciam em discursos. Mas o jornalismo tem seus protocolos e esses tendem a ser claros no que diz respeito aos lugares de fala e de autonomia de seus agentes. Repórteres não devem amistosamente dialogar, pelo contrário, interrogar. Devem ser precisos e claros em suas perguntas. A pergunta é, sempre, uma demanda específica e direta. Entrevistados, por sua vez, não devem roteirizar nem devem encenar. Devem procurar ser precisos e claros em suas respostas. Fora isso, como diria o José Arbex, é showrnalismo.

Terceira hipótese: a entrevista em si não deu certo. O que era para ser uma entrevista exclusiva de Suzane ao Fantástico tecnicamente não se concretizou. Mesmo estimulada pela repórter, que tentava ‘destravar’ Suzane, a jovem foi, durante a gravação, reticente, fugidia e suas falas eram curtíssimas, confusas, desconexas, forçadas e de edição, mesmo para a tv, improvável. Ou seja, aquele material exigiria um outro tipo de enquadramento para ser devidamente aproveitado. Houve uma situação de fato e de conteúdo que merecia uma nova postura do repórter. Mas, é importante salientar, houve também um imperativo discursivo. Uma imposição do editing jornalístico. Em termos discursivos, a obtenção da gravação do momento em que os advogados orientam Suzane a ‘interpretar’ e simular momentos de tristeza, arrependimento e choro, tornou possível a edição e, impôs-se, assim, como este novo enquadramento que ‘salvou’ a entrevista.

O cheiro incômodo de hipocrisia: quem assistiu à matéria da Globo no Fantástico e acompanhou as repercussões pôde perceber o destaque dado à ação dos advogados sobre Suzane. Corretamente, inclusive a OAB foi ouvida a respeito e, em princípio, censurou os advogados da ré. A Promotoria conseguiu que, em menos de 48 horas, Suzane fosse novamente presa, alegando risco de fuga e que, agora, o próprio irmão de Suzane corria risco de vida. Sem entrar no mérito desse último aspecto, esta reflexão se encerra com duas perguntas:

1) Qual advogado nunca orientou seu cliente no momento de uma audiência e, principalmente, de uma entrevista, mais ainda, entrevista para um programa de audiência nacional como o Fantástico?

2) E se Suzane, na entrevista, tivesse sido convincente?

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Jornalista, professor, coordenador do Curso de Comunicação da PUC-Minas