A semana recém-finda deixou lição: a mídia, quando quer, sabe como capitalizar as atenções, explorando conteúdos substanciais. O cidadão brasileiro foi premiado com temário variado, dia-a-dia, num clima de suspense, à altura de despertar inveja em qualquer roteirista. Em síntese, deu-se autêntica ‘Semana da Comunicação’.
Enquanto irrompia a plácida manhã dominical de 17/10, o Correio Braziliense estampava supostas, mas igualmente chocantes, fotos de Vladimir Herzog, gerando verdadeiro alvoroço. Por sua vez, a mídia eletrônica fechava a noite daquele mesmo dia com denúncia, num dos blocos do Fantástico (TV Globo), acerca do desvio criminoso do programa assistencialista do governo conhecido como ‘Bolsa-família’. Daí advieram desdobramentos relativos às respectivas matérias, o que propiciou, a um só tempo (e por razões distintas), densas turbulências em altas esferas: Exército, ministério da Defesa, secretaria dos Direitos Humanos e ministério do Desenvolvimento Social.
Quando os temas exaustivamente explorados, confirmados, negados e corrigidos ameaçavam beirar o esgotamento, novo e surpreendente assunto impacta o cidadão, ao apagar das luzes de quinta-feira (21/10), na última edição do telejornal noturno da Rede Globo, exibindo o prestigiado marqueteiro-publicitário Duda Mendonça em pleno envolvimento com o ‘nobre esporte’: rinha de galo.
As fotos da tortura
Afora o interesse inerente a cada cobertura, independentemente de sua justeza ou incorreção, o que conta é como o leitor/espectador pode assimilar os conteúdos e processá-los criticamente, sem deixar-se atrair por apaixonados impulsos (contra ou a favor), típicos de ‘torcedores’. Feito, portanto, o registro, cabe avaliar o saldo da extração crítica, derivante de generosa oferta temática.
O que ensinou ao cidadão brasileiro a vasta cobertura a respeito dos ‘anos de chumbo’? A constatação de persistirem fantasmas rondando o imaginário nacional, fruto de um acordo (anistia) do qual a real vontade popular ficou à margem. Pela gravidade da decisão, à época devida, a população deveria ter sido convocada para referendar (ou não), mediante plebiscito, a posição firmada entre elites políticas e militares, além de alguns segmentos organizados da sociedade civil, a exemplo da OAB, ABI e CNBB. Optaram, todavia, pelo caminho mais esquivo. É sabido, porém, que nenhuma nação pode traçar o futuro ao preço do ‘esquecimento’ das dilacerações trágicas – pois estas, como sombras, sempre reaparecerão.
Também ensinou o mesmo episódio – haja vista o teor da primeira nota oficial emitida pela secretaria de Comunicação Social do Exército – que , no interior das hostes militares, sobrevivem ainda alguns setores prontos a justificarem as torpezas das quais foram protagonistas. Esta face, a segunda nota corretiva não conseguiu apagar.
O ‘Bolsa-família’
Que lição foi legada ao leitor-espectador com a denúncia dos descaminhos do ‘Bolsa-família’? A tradução fiel de uma tradição corrupta, sob a tutela de um governo ingênuo. Somente a ‘pureza pueril’ pode delegar o repasse de verbas assistencialistas a prefeituras interioranas que, há décadas, se esmeraram no aprimoramento de práticas criminosas, tantas vezes já denunciadas.
Foi necessário o telejornalismo flagrar para então surgir a idéia do ‘mutirão do saneamento’, transformando, uma vez mais, o cidadão voluntarioso (a exemplo dos diligentes ‘fiscais do Sarney’, de 1986) em representante da função fiscalizadora, cuja prática deveria caber ao Estado.
Revela-se, portanto, mais um episódio de fragilização da ação pública para a erradicação do que, na experiência brasileira, já se confunde com maldição histórica.
A rinha de galo
Por fim, que avaliação resta para a melancólica historieta, protagonizada por alguém que é tido como o ‘mago’ capaz de tudo conhecer a respeito de ‘formação de imagem’ e, ironicamente, parece não saber aplicar o ‘conhecimento’ para proteção da auto-imagem?
Não é difícil a resposta. É a pura confirmação de uma dada realidade: o país, ao longo das últimas décadas, é regido por um imaginário-esquizo, cuja identidade está demarcada por profunda disjunção entre inteligência, sofisticação intelectual e poder aquisitivo. Este perfil esquizóide parece perpetuar sintoma que atravessa a história brasileira: ou tem-se a predominância do ‘ingênuo esforçado’, ou firma-se o ‘refinado esperto’. Nos dois casos, o resultado final tem sido o fracasso.
Na quinta-feira (21/10, às 23h37), o Globo Online, a propósito do flagrante do delito a envolver, entre outros, o publicitário Duda Mendonça, traçava o perfil básico do marqueteiro citado, com a seguinte chamada: ‘Duda Mendonça, um baiano fanático por galos’.
Dentre outras informações, a página recordava o fino degustador do vinho Romanée-Conti, aludindo ao episódio comemorativo da eleição de Lula. Adiante, a matéria assinala não ser o publicitário portador de diploma de curso superior e arremata com a frase: ‘Duda também é amante de pesca em alto-mar e é ávido leitor de livros de auto-ajuda’.
Os dados recolhidos são suficientes para a ilustração desejada. Trata-se do típico caso de pródiga inteligência funcional, capaz de tornar alguém bem-sucedido na vida, por conta da eficiência em saber lidar com desafios operacionais e circunstanciais, embora destituído de mínimo requinte intelectual. Esse modelo tem prosperado no país. A questão é saber se, pela primeira vez, na História da Civilização, uma nação se afirmará desprezando a união entre inteligência funcional e formação intelectual.
No mais, fica ao leitor a ponderação a respeito do que aqui foi sinalizado. Tratar-se-á de uma avaliação calcada no preconceito ou será uma formulação de base conceitual?
Portanto, ficam, a título de sugestão, ‘leituras’ analíticas possíveis que a ‘Semana da Comunicação’ concedeu ao leitor brasileiro. Foi uma semana de atividade jornalística digna. O leitor que aprecia pensar teve sua expectativa realizada.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio)