Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Jornalismo e pensamento, diálogo e mutismo

Repercutiu rapidamente, na net, a entrevista ‘A Europa está sonâmbula’, que o intelectual francês Edgar Morin concedeu ao periódico espanhol El País (31/1, ver aqui).

Morin (que, segundo o periódico, preparava as malas para ir ao Brasil em janeiro) aborda múltiplos problemas atuais do continente europeu, enquanto valoriza o potencial que emana da América Latina (AL), muitas vezes desconsiderado e/ou denegado pela grande mídia brasileira: ‘Hay un contraste entre la vitalidad de varios países de América Latina y lo que sucede en Europa. Allí hay vitalidad para plantear los problemas, e incluso para resolverlos, mientras que aquí todo parece estar en letargo, como si Europa sufriera una esclerosis. Yo esperaba de Europa un renacimiento, un renacimiento intelectual, político y social. Y lo que tenemos delante es una regresión que impide buscar el camino del porvenir.’

Morin é preciso acerca do contexto da União Europeia. A crise de pensamento e ação política leva ao paradoxo de expansão do espaço europeu (27 países) ao mesmo tempo em que há um fechamento aos demais povos, sejam os de outros continentes ou de religiões não-cristãs. O fechamento se dá também no interior das fronteiras dos países membros da UE, com a direita assumindo o poder na maioria deles e recrudescendo na perseguição de imigrantes ilegais (França e Itália à frente), e a centro-esquerda, como em Portugal e Espanha, incapaz de dar respostas rápidas que apontem para novos rumos no tempo de crise econômica e de desemprego em alta (chegou a 18,83% na Espanha, o maior entre os 27).

Uma crise ética e dos afetos

Resultado preocupante captado esta semana pelo Eurobarômetro, instituto de estatísticas da União: ‘Os cidadãos comunitários acreditam que a sua situação social piorou nos últimos cinco anos e mantêm uma perspectiva pessimista para os 12 meses que se seguem. Apenas os três países escandinavos e a Holanda apresentam respostas e expectativas menos negativas’, publicou o Jornal de Notícias, do Porto (ver aqui).

Um dado ainda mais grave veio em janeiro, do Eurostat, outro órgão da UE: o risco de pobreza está longe de ter sido erradicado na zona comunitária: varia de 5% da população na República Tcheca (menor índice) a 17% na Romênia (maior índice). Portugal e Polônia aparecem em posição intermediária, com 12%.

A crise pode ser uma das explicações para a ascensão da direita, mas não explica tudo. Na Grécia, em 2009, a esquerda ganhou após meses de revolta estudantil nas ruas de Atenas contra repressões do governo anterior, de direita, e no rastro da crise. O medo parece ser mesmo o do ‘estrangeiro’, por mais que a Europa seja uma mescla de religiões e povos de diferentes origens, como destacou Morin a El País. Ressalva: Portugal, onde os brasileiros já são a maioria entre os imigrantes (cerca de 140 mil), tem dos menores índices de rejeição a estrangeiros. Para além do aspecto sócioeconômico, está em curso uma crise ética e dos afetos. Pobreza, como bem sabemos no Brasil, gera violência urbana (em Portugal, os crimes violentos subiram mais de 200% de 2008 para 2009) e a sensação é de que a ‘culpa’ é dos estrangeiros, enquanto o Alto Comissariado para Imigração e Diálogo Intercultural (Acidi) de Portugal divulgou, em 2008, que 1% dos crimes foram praticados por imigrantes, índice próximo da média mundial.

Mais densidade e credibilidade

Portanto, as preocupações de Morin procedem e El País em muito contribui para divulgá-las, mantendo uma editoria ‘União Europeia’, na qual tem em perspectiva os problemas de dimensão macrocontinental da organização e não raro publica entrevistas com pensadores importantes. Está longe de ser um jornal partidário ou governista. Se não é de direita (e não é), tampouco é de esquerda, integrando o conglomerado de comunicação Prisa, que detém jornais, rádios, TVs e outras modalidades. Cumpre, em entrevistas como essa, o papel de manter a reflexão aprofundada, ouvindo intelectuais com frequência, expondo sua fala em páginas e editorias ‘vizinhas’ à da política. Raros jornais brasileiros o fazem.

No Brasil, jornais (e muitos jornalistas) tendem a encerrar os intelectuais e a produção acadêmica num eterno ‘intramuros’, dedicando-se mais a acusar um fechamento do pensamento nas universidades do que a dar-lhe espaço através de instrumentos simples do jornalismo: entrevistas e artigos. A restrição às vezes acontece mesmo em revistas e jornais editadas por assessorias de comunicação de universidades, voltadas mais para a propaganda dos gestores que para o pensamento. Isso interessa a burocratas e carreiristas (e os há entre professores), e não a intelectuais que pensam acerca da realidade do país e têm na internet mais espaço que na mídia impressa (vide o OI, Carta Maior e blogs que surgem por iniciativas individuais ou de coletivos).

Esse distanciamento, se não traz consequências negativas de imediato, é um ‘desperdício de experiência’ (para dizer como Boaventura Santos). Publicar e, sobretudo, ouvir aos intelectuais dá mais densidade e credibilidade à comunicação social e leva aos governantes e ao público em geral opiniões que podem precaver problemas iminentes que escapam ao olhar cotidiano e factual. Vejamos, por exemplo, o caso do estaleiro no Ceará, que citei em meu artigo anterior – uma polêmica que eclodiu em janeiro e que fora antecipada em quatro meses pelo filósofo e sociólogo Daniel Lins em artigo no jornal O Povo, de Fortaleza, o qual muitos políticos e jornalistas desconsideraram.

Aproximação com a produção intelectual

Particularmente sou a favor da formação universitária para o exercício da profissão, mas não da exclusividade de formação em Comunicação Social. Nota pessoal: comecei ‘provisionado’ em 1987, adquiri o registro profissional em 1993 e depois me formei em História (graduação e mestrado na UFC). Contudo, creio que a postura dos jornalistas que seguem as determinações dos grandes jornais – pertencentes a grupos econômicos e/ou familiares e avessos aos governos de esquerda e centro-esquerda ora no poder na AL – mantém o risco de fragilizar os argumentos dos que defendem a formação como jornalista nas universidades. Pois se não é para aprimorar a aproximação pensamento-informação, como reivindicar um estatuto de ‘Ciência Humanas’ para o Jornalismo na academia? Se a ‘técnica’ continuar a prevalecer em relação ao pensamento, à formação em diálogo com Sociologia, História, Ética, Letras,Antropologia, o que se defende é a formação de mão-de-obra ou de profissionais pensantes e críticos?

Informação e reflexão não são inconciliáveis. O jornalismo é um instrumento eficaz nessa aproximação e serve melhor à sociedade se estreitar suas relações com a produção intelectual.

******

Jornalista, historiador e doutorando no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal