Em 07/11/2010, a TV Record, no quadro ‘Reportagem da Semana’ do programa Domingo Espetacular, veiculou uma matéria tratando do infanticídio supostamente praticado por algumas ‘tribos’ indígenas brasileiras. Ao introduzir a matéria, os apresentadores do programa Fabiana Scaranzi e Paulo Henrique Amorim foram totalmente parciais, conduzindo os telespectadores à indignação e ao pesar, amparados por uma música de fundo que reforçava o clima psicológico desejado. Fabiana exclamou enquanto gesticulava de forma indignada: ‘Uma tragédia que o Brasil desconhece!’ Enquanto Amorim, em tom de preocupação, informou que o público iria saber ‘as razões pelas quais as autoridades evitam falar sobre o assunto’.
A reportagem foi iniciada de forma épica narrando a viagem de mais de 17 horas de ‘dois rapazes que precisam resgatar um bebê’. Então, o repórter de campo Raul Dias Filho apresentou a questão do suposto infanticídio, destacando de forma fragmentada elementos da ‘cultura indígena’, levando a uma falsa sensação de homogeneidade dos mais de 240 povos indígenas brasileiros, que falam aproximadamente 180 idiomas. As imagens de diferentes etnias foram veiculadas numa contextualização muito frágil sob a narrativa trágica proposta, fato que induz o telespectador a concluir como sendo absurda a preservação da cultura e da tradição indígenas ‘em pleno século 21’.
‘Missionários evangélicos escondem seu trabalho’
O argumento central da matéria foi baseado no filme Hakani, que até bem pouco tempo era veiculado como ‘documentário’ sem que o público soubesse quem eram o autor e financiador da produção. O filme simula como seria praticado a infanticídio indígena. Entretanto, os atores, todos indígenas, dão à produção um tom de verossimilhança capaz de confundir o telespectador, que acredita estar assistindo a um documentário e, portanto, pensa estar testemunhando um infanticídio. É importante que isso seja destacado, pois esses indígenas de diferentes etnias acabam sendo usados para produzir provas contra si mesmos. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) já havia se pronunciado sobre o filme através de sua Comissão de Assuntos Indígenas:
‘Trata-se de uma tentativa de criminalização das coletividades indígenas, colocando-as na condição permanente de réus e propondo um inquérito para averiguação de seu grau de barbárie. (…) Trata-se de um falso debate, ardilosamente tecido para que as pessoas discutam se são a favor ou contra `que os indígenas possam exercer livremente a crueldade contra seus próprios filhos´.
Implícita há a suspeita de uma natural perversão e irracionalidade dos indígenas, crença que serviu de álibi para que contra eles no passado fossem usadas sistematicamente a força bruta, a escravização e a pedagogia do medo. Uma suposição que vem do período colonial, fresca como um cadáver de cinco séculos, mas ainda bastante presente nas práticas autoritárias e no pensamento conservador. Sabe-se que práticas de infanticídio entre os indígenas são virtualmente inexistentes no Brasil atual, como logo vieram a esclarecer a Funai e os antropólogos. São raros os casos onde exista informação etnográfica confiável ou consistente sobre tais fatos. (…) O vídeo Hakani, colocado no YouTube e visitado por milhares de pessoas, não é um registro documental proveniente de uma aldeia indígena, mas sim o resultado de uma absurda encenação realizada por uma entidade fundamentalista norte-americana.’
A entidade fundamentalista à qual a ABA se refere é a norte-americana Youth With a Mission, atuando no Brasil desde 1975 como Jocum, ‘Jovens Com Uma Missão’. O diretor do filme, David L. Cunningham, é filho do fundador da instituição. O trecho do filme, colocado no YouTube sem os devidos créditos para que os internautas possam saber sua origem, foi visto por mais de 1 milhão de pessoas. O site do filme continua a tratar a produção como documentário e não há qualquer referência aos produtores. A razão desse tipo de comportamento da instituição foi explicada pelo antropólogo britânico Stephen Corry, que afirmou, ao comentar o filme: ‘Há décadas que os missionários evangélicos escondem seu trabalho, especialmente em lugares como América do Sul, que tem uma tradição católica muito forte. A Jocum foi expulsa de certas áreas do Brasil, mas continua lá ilegalmente.’
Enfoque mito-simbólico das culturas indígenas
Outra organização fundamentalista que milita na temática publicou o e-book Infanticídio Indígena – a tragédia silenciada, uma comunicação muito bem cuidada do ponto de vista editorial capaz de causar impacto ao leitor desavisado. O mesmo efeito que se pretende com a reportagem da Record e o filme Hakani, que, por sinal, foi muito utilizado no livro. O autor é o fundador de um ‘apostado’ ou ‘missão’ católica, o brasileiro radicado australiano, Raymound de Souza, que agora vive nos EUA. A organização é a ‘Saint Gabriel Communications International’ (SGC). A publicação procura enfatizar a importância das ‘missões religiosas’, destacando seu papel fundamental na ‘cristianização do planeta’. A organização possui muitos recursos financeiros e tem projeção internacional, investindo pesadamente na disseminação de sua ideologia fundamentalista. Este apostolado se opõe abertamente ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), um segmento da igreja católica que respeita a religiosidade indígena, trabalhando com os indígenas sem a pretensão de catequese.
Parece haver uma grande estratégia de união entre grupos fundamentalistas. A parceria com a TV Record, que pertence à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), comandada pelo bispo Edir Macedo, produz a reportagem em questão, que é também largamente lastreada no documentário da jornalista indígena Sandra Terena Quebrando o Silêncio, produzido pela ONG Atini, dos também missionários evangélicos Marcia e Edson Suzuki, entrevistados durante a reportagem da Record. No documentário de Sandra, há uma clara manifestação dos indígenas contra os antropólogos, argumento curiosamente baseado num fundamento antropológico, o do ‘dinamismo cultural’. É gritante a omissão de qualquer referência às missões religiosas, que certamente produziram muito mais males às sociedades indígenas do que qualquer antropólogo posso ter causado, mas não há qualquer menção a esse fato.
Um dos entrevistados de maior eloquência no documentário de Sandra é o indígena Eli Ticuna, vice-presidente do Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas (Conplei), cuja missão explícita é evangelizar os índios. Outro argumento largamente usado pelos indígenas depoentes é que ‘eles não são bichos’. Evidentemente que não são, por isso os antropólogos trabalham pela preservação de suas culturas. A inquestionável importância da educação para dirimir as diferenças é também abordada no documentário da Terena, mas há um enfoque claramente de integração dos indígenas na cultura envolvente. Em nenhum momento se falou da preservação das técnicas médicas tradicionais, absolutamente fundamentais para existência das culturas. Aliás, é preciso que se faça uma distinção entre o caráter holístico das culturas indígenas, muito mais centradas num enfoque mito-simbólico do que numa perspectiva lógico-epistêmico da fragmentada cultura ocidental.
Liderança indígena na audiência pública
Essa grande estratégia missionária se estende ao legislativo com o Projeto de Lei 1057/2007 – Lei Muwaji, de autoria do pastor e fundador de uma congregação presbiteriana, o deputado Henrique Afonso (ex-PT, agora PV do Acre) vinculado à Frente Parlamentar Evangélica. O PL apresenta três argumentos: (1) Baseado na Lei Federal, condena qualquer prática indígena que agrida a integridade fisio-psíquica da pessoa, designada como ‘nociva’ com destaque para o infanticídio. Sendo que as crianças em tais situações deverão ser afastadas de suas famílias ou comunidades. (2) Obriga qualquer pessoa que saiba de situações dessa natureza junto às comunidades indígenas a formalizar denúncia do fato junto ao órgão competente estabelecendo pena de detenção para omissões. (3) Essas práticas deverão ser erradicadas.
O PL sofreu parecer da deputada Janete Rocha Pietá (PT, SP) que é professora universitária e atuou como relatora da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal. O parecer contemporiza a questão salientando as duas correntes antropológicas que estão implícitas na formulação do PL. Uma que considera a existência de valores universais para toda a humanidade e outra que considera a existência de valores culturais, portanto não universais. Salienta o cuidado que deve ser tomado frente à controvérsia do tema e destaca o uso do termo ‘nocivas para denominar algumas práticas tradicionais dos povos indígenas, o que atribui, mesmo que implicitamente, a pecha de cruéis a esses povos e, por via de consequência, deixa de considerar sua pluralidade cultural, colocando-os à margem da sociedade’. A parecerista é favorável à aprovação do PL com alterações, propõe a criação de um Conselho Nacional Indígena e um Conselho Tutelar Indígena. ‘No que tange à criminalização daqueles que tiverem conhecimento da ocorrência das práticas tradicionais (arts. 3º a 5º do projeto), trata-se de equívoco, pois o desenvolvimento de trabalhos junto aos povos indígenas ficaria inviabilizado frente à obrigação legal de delação imposta a esses trabalhadores. Essa situação, por si só, dificultaria o diálogo previsto no art. 6º do projeto.’
Não há dúvida nenhuma, como propõem as produções, que a prática do infanticídio tenha levado grande sofrimento psicológico aos que o praticaram e àqueles que sofreram com o mesmo. Isso não se discute. Como é inquestionável que a vida deve ser preservada como o bem maior. As culturas indígenas não são etnocidas, como é sugerido nas produções. Lideranças indígenas como Valéria Payê, do Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas – FDDI, em sua apresentação na Audiência Pública que discutiu o PL, resgatou a experiência do seu grupo indígena ‘que aboliu práticas tradicionais de sacrifício de crianças há cerca de 30 anos. Ela ressaltou que isso ocorreu após um processo interno de discussão liderado pelas mulheres indígenas. Insistiu que não há necessidade de interferência brutal de fora, mas sim, a apropriação da discussão pelas comunidades indígenas, respeitando o tempo de cada uma’.
‘Não aumentem o preconceito e o racismo’
Parece claro que o que importa discutir é como se propõe a preservação da vida, pois a cultura é um de seus elementos fundamentais. As culturas indígenas são impregnadas de religiosidade. Será que as entidades religiosas envolvidas nesta questão humanitária estão dispostas a lutar pela causa indígena respeitando a diversidade religiosa desses povos? Se estão, por que não declaram isso em suas comunicações e posicionamentos? Por que, na luta pela preservação da vida, não se envolvem com a questão dos suicídios indígenas em função do ‘recuo impossível’ pela falta de demarcação de terras indígenas e pressão dos grandes latifundiários? Morre-se muito mais nessas regiões do que por qualquer suposto infanticídio.
Por outro lado, é interessante observar como o fundamentalismo é capaz de colocar do mesmo lado, ao menos momentaneamente, oponentes históricos como são evangélicos e católicos e em oposição congregações da mesma igreja, como é o caso do Cimi e da SGC.
As estratégias perversas praticadas pela sociedade ocidental sob o viés da religiosidade para cooptar indígenas para suas igrejas seduzindo-os com as tecnologias e as benesses do mundo ocidental são as mesmas desde a conquista e parecem continuar presentes nessas manifestações.
Tudo que foi dito aqui pode parecer apenas uma questão de opinião, mas não é. É importante observar como a falta de compreensão sobre essas questões por parte dos produtores e veiculadores de comunicação pode levar à falta ética e ser altamente prejudicial à sociedade indígena. Isso foi particularmente sentido pela índia Rosi e foi descrito na matéria publicada no Diário do Amazonas (21/11/2010) sob o título ‘A Anta que Virou Elefante num Domingo Espetacular’, assinada pelo jornalista José Ribamar Bessa Freire.
‘A segunda-feira da índia Rosi Waikhon na periferia de Manaus foi um dia de cão. Escapou, por pouco, de ser apedrejada. Ao sair de casa, várias pessoas lhe atiraram na cara frases do tipo: `Ei, índia, você não é gente, índio mata o próprio filho, vocês deviam morrer.´ Minha amiga há muito tempo, ela me confidenciou: `Meu dia virou um terror, em todos esses anos, nunca tinha ouvido palavras tão pesadas e racistas.´ Rosi é índia Waikhon – etnia conhecida também como Piratapuia. Mora na Terra Indígena Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira (AM) e está de passagem por Manaus. É educadora e líder da Foin – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. Escritora, participou de dois Encontros de Escritores Indígenas na UERJ. Ela faz um apelo: `Gostaria de pedir aos senhores que não continuem usando o termo infanticídio indígena. Por favor, não aumentem o preconceito e o racismo contra nosso povo´.’
Portanto, parece ser cabível afirmar que as produções são uma clara violação ao Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros que, em seu artigo 7º, ‘O jornalista não pode’, traz o seguinte capítulo: ‘V – usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime’. É exatamente isso que a matéria faz ao induzir o espírito dos telespectadores para um determinado olhar, ao omitir e distorcer informações lastrear seu argumento, supostamente jornalístico, em informações veiculadas por grupos que tem um claro interesse em disseminar um posicionamento ideológico. O mais incrível é perceber como jornalistas renomados, como Paulo Henrique Amorim, podem se sujeitar a esse tipo de papel.
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Psicólogo (CRP/06-35863), mestre em Ciências da Religião (PUC-SP), doutor em Psicologia (USP), conselheiro e coordenador do Grupo de Trabalho Psicologia e Povos Indígenas do CRP-SP