Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornalistas do Brasil, uni-vos!

O Brasil tem aproximadamente umas cem mil pessoas portadoras de registro profissional de jornalista. Pelo menos mais da metade deste contingente estudou quatro anos nas faculdades de Jornalismo para poder aceder a este direito. Não é novidade para ninguém que o Supremo Tribunal Federal, confundindo direito de opinião com a capacidade de investigar, entrevistar, colher, editar e divulgar informações (ou seja, fazer jornalismo), revogou a obrigação da formação acadêmica como requisito para o exercício profissional.


Como resposta, a categoria conseguiu que duas PECs – Propostas de Emendas à Constituição fossem apresentadas; uma no Senado Federal e outra na Câmara dos Deputados. A da Câmara está com a tramitação mais adiantada e a Comissão Especial que irá analisá-la já foi formada e já tem data para se reunir.


Do lado patronal e, em especial, daqueles que preferem uma categoria sem referenciais, principalmente o ético, a nova investida é contra a figura do registro profissional. Ele está sendo visto como um elemento que inibe a liberdade de expressão. Curiosamente, no berço da democracia republicana, a França, o registro profissional, lá chamado de carte de presse, existe normalmente, e sua concessão é atribuição de uma comissão formada por jornalista, representante das empresas e do Estado.


Cadernos culturais foram eliminados


Embora no Senado Federal a PEC do Diploma esteja quase hibernando, para espanto de muita gente, na sexta-feira (4/6) os principais jornais do país, dentre eles a Folha de S.Paulo e o Jornal do Brasil, publicaram um artigo do presidente daquela Casa, José Sarney, condenando o requisito de formação acadêmica para a função jornalística.


O ex-presidente da República e atual presidente do Senado Federal é titular do registro profissional número 62, emitido pela DRT do Maranhão, em 19/1/1950. Embora a previsão da formação acadêmica já existisse, a exigência não era aplicada pelo Ministério do Trabalho. Bastava uma carta do empregador afirmando que contrataria fulano ou sicrano para que este obtivesse seu registro. Um estágio de doze meses também poderia ser a exigência básica para virar legalmente um profissional.


Segundo Sarney, a formação acadêmica afastou os escritores e literatos da imprensa, pois não tinham formação jornalística. Diz o senador: ‘Os nossos intelectuais estão afastados da mídia impressa, e se recolhem em guetos que atuam para públicos específicos, o maior e melhor deles a universidade.’


Perdoe-me o senador Sarney, mas os intelectuais não estão mais na imprensa pelo simples fato de os cadernos culturais e literários terem sido eliminados ou reduzidos por conta da ganância das empresas jornalísticas. O mesmo Jornal do Brasil onde também foi publicado seu artigo não tem mais o ‘Caderno B’ no formato que existia nas décadas passadas. Não existem nem mais as seções de ‘Educação’, cujo tema hoje se perde nas chamadas editorias de ‘Nacional’ ou ‘Geral’.


Nem marimbondos nem um mosquitinho


Nossos intelectuais também não estão na mídia radiofônica e televisiva pelo fato do perfil comercial destas emissoras não permitir espaços para quem deseja falar de poesia, literatura, arte e cultura, salvo aquela dos best sellers e dos billboards.


Neste processo todo de revisão de nossa profissão, sem o devido debate aberto com a sociedade, nossa função social de informar corretamente o cidadão já foi equiparada a função de mestre cuca – ou terá sido chefe de cozinha? Na Colômbia, onde há mais anos a Suprema Corte também revogou a regulamentação profissional após uma investida da Sociedade Interamericana de Prensa (os donos dos 700 jornais mais importantes das três Américas), o jornalismo foi considerado não uma profissão, mas sim, um ofício. Um ministro daquela corte disse que equivaleria à de um pedreiro ou carpinteiro.


Em seu artigo, o ex-presidente recupera uma anedota onde até o carregador de penico da corte imperial em terras brasileiras era função regulamentada. Terá ele feito alguma ilação entre o servidor das atividades sanitárias reais e os jornalistas de hoje? Acredito que não, caso contrário os profissionais estariam soltando marimbondos de fogo.


E aí chegamos ao ponto onde eu queria chegar: a reação da categoria. Estes cem mil brasileiros, que pagaram quatro anos de faculdades – ou foram subvencionados durante quatro anos pelo Estado brasileiro para se capacitarem em bons profissionais do jornalismo – parecem estar anestesiados. Não há marimbondos de fogo, nem mesmo um mosquitinho a zumbir nos ouvidos do poder.


Melhoria qualitativa da informação


A regulamentação profissional dos jornalistas foi criada por Getúlio Vargas em 1938 – ou seja, há 72 anos. Foi ele quem garantiu a jornada de cinco horas diárias para a profissão, que não é respeitada pela maioria dos órgãos públicos e que certamente será o próximo alvo patronal – e em seguida o piso salarial e sabe se lá o que mais depois.


A nossa regulamentação é fruto de muita mobilização dos profissionais de então, todos sem diplomas é verdade, mas todos defensores do curso de Jornalismo – instituído também por Getúlio Vargas. Os anais da Associação Brasileira de Imprensa demonstram que, em 1911, nossos bisavós da imprensa não só defendiam a criação do registro profissional, como também da criação do Curso de Jornalismo.


Na década de 60, com Jânio Quadros e João Goulart, novas iniciativas foram adotadas para garantir a formação acadêmica. Infelizmente, a queda prematura de ambos fez com que a legislação de então ‘não pegasse’ e só depois em 1969 é que seria editado o decreto-lei 972-69 assegurando a atualização da regulamentação profissional e a exigência da formação acadêmica, que passou a valer mesmo dez anos depois, com o decreto 83.284/79.


Foram muitos anos de lutas, algumas bem duras, contra inimigos poderosos e os jornalistas se mobilizaram e agiram em corpo. Nesta época, muitos coleguinhas eram parlamentares. Pompeu de Souza e o saudoso Barbosa Lima Sobrinho são alguns exemplos. Da tribuna foram defensores de uma causa que só beneficiaria a sociedade. A formação acadêmica do jornalista é antes de tudo a melhoria qualitativa da informação levada aos leitores e espectadores.


Até analfabeto recebeu registro


Agora, quase não temos mais jornalistas parlamentares. Candidatura corporativa é algo que não cativa muito os coleguinhas. Médicos, advogados, engenheiros, metalúrgicos todos podem ter suas bancadas corporativas no parlamento federal e nos estaduais. Nós não. Não pega bem. Por isso quase não temos mais jornalistas parlamentares e quando os temos não são muito afeitos aos problemas da corporação.


Durante muito tempo pensei assim também. Para o parlamento já votei em médico, economista, engenheiro mecânico, servidor público federal. Para jornalista, confesso que só uma vez. Foi na Constituinte de 1986 e mesmo assim ele não foi eleito. Embora fosse à época presidente de um sindicato de jornalistas, meu candidato não contou com o voto fechado de sua base. Esta preferiu lideranças bancárias, vigilantes e jurídicas dentre outras.


Lembro-me que na Constituinte, praticamente, só tínhamos a deputada Cristina Tavares do PMDB de Pernambuco defendendo o capítulo da Comunicação, que acabou sendo totalmente mutilado e mais da metade do que se previa para ele não foi aprovado pelos constituintes.


Bem, uma nova eleição se avizinha. Assim como na Constituinte tentaram derrubar a formação acadêmica dos jornalistas, novamente as forças já não mais ocultas avançam sobre a nossa profissão, sobre as nossas conquistas, sobre as garantias de uma informação mais abalizada para a sociedade. Há registros que após a decisão do STF, até analfabeto já recebeu registro profissional.


A pergunta que não quer calar é: os jornalistas vão ficar parados vendo a caravana passar ou vão começar a pensar e a se organizar para em cada um dos estados da federação tentarem eleger um representante da categoria?


Quem vai fazer o embate dentro do Parlamento na hora da votação da PEC do Diploma? Quem vai pedir um aparte ao presidente do Senado, José Sarney, e expor um posicionamento contrário ao dele? Quem vai adotar um comportamento parlamentar que fira os interesses dos meios de comunicação, interessados em desorganizar esta categoria profissional e tornar a mão-de-obra ainda mais barata e mais precária profissionalmente?


As respostas a estas questões devem ser depositadas nas urnas, ou melhor, tecladas nas urnas eletrônicas de 3 de outubro de 2010. Do resultado que advir delas poderemos antecipar o futuro de nossa profissão.


Abaixo, o artigo do presidente do Senado Federal, José Sarney, publicado na sexta-feira (4/6/2010).


***


O orinó de dom Pedro
José Sarney


Há uma frenética corrida no país para regulamentar profissões. São dezenas de projetos que diariamente chegam às casas legislativas. Uns bons, outros nem tanto, mas os textos de todos excessivos na tentativa de dominar espaços exclusivos, que defendem território mais do que ursa no cio.


A primeira trombada que tiveram foi o Supremo Tribunal Federal concluir que a Constituição não permitia exclusividade ao diplomado em jornalismo para escrever em jornais. Se é livre a manifestação da opinião, a liberdade de pensar e escrever, como restringir publicá-las? No momento em que se torna exclusiva de um grupo profissional, excluímos aquilo que é a fonte maior do jornalismo, o escritor. E isto é tanto verdade que os intelectuais do país foram afastados em grande parte dos jornais, morreram os suplementos literários e há anos estamos mergulhados somente na matéria sensacionalista da mídia impressa.


A internet, de certo modo, e a decisão do Supremo estão abrindo espaços neste mar de obscurantismo que se tornou a literatura brasileira dos últimos anos, ou mesmo decênios. Os jornais têm culpa porque sempre foram eles os alavancadores das vocações que surgiam e depois cresciam e espalhavam talentos. Todos os grandes escritores do século 19 e do século 20 passaram pelos jornais e por eles foram lançados. Hoje, o espaço destinado aos escritores é estreitíssimo ou inexistente. Devemos repetir: os nossos intelectuais estão afastados da mídia impressa, e se recolhem em guetos que atuam para públicos específicos, o maior e melhor deles a universidade.


Agora mesmo está no Congresso um projeto de lei regulamentando a profissão de historiador. Assim, ninguém vai poder escrever sobre História se não estiver enquadrado dentro dessa profissão, incorrendo quem quiser fazer novela, romance, ensaio ou estudo histórico para publicação, em sanções por violação da lei ou submeter-se aos historiadores diplomados.


A fobia da regulamentação me faz lembrar uma anedota histórica que não sei exatamente onde li, mas aventuro-me a dizer que foi no Brasil anedótico, de Humberto de Campos o maior e mais lido em todos os tempos como mestre da crônica, idolatrado no Rio de Janeiro. Um nobre fora visitar Pedro II enfermo. Este, sentindo-se mal, pediu o orinó. O nobre gentilmente aventurou-se a buscar o vaso para o soberano urinar. Foi violentamente interrompido pelo camareiro-mor (os nomes esqueci) que disse enérgico: Quem tem a honra e a atribuição de levar o penico a Sua Majestade sou eu. Estava regulamentado nos costumes da Corte. Será que vamos retroceder a esse tempo?

******

Jornalista, PhD em Ciências da Informação e Comunicação pela Universidade de Rennes – 1 (França), foi presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF