A publicação dos primeiros dados da caixa-preta do Airbus da TAM ocorrido na semana passada (Folha de S.Paulo, quarta, 1/8) não foi a primeira quebra de sigilo de um inquérito sobre acidentes aéreos. A tragédia anterior, com o Boeing da Gol, também produziu um outro tipo de vazamento – que não chegou ao conhecimento do público.
A revelação foi feita pelo brigadeiro Jorge Kersul Filho, diretor do Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos), na entrevista coletiva do comando do transporte aéreo em Brasília, na tarde de 23/7, transmitida ao vivo pelos canais de notícias. O brigadeiro, como sempre, foi objetivo (talvez por isso tenha sido aconselhado a manter-se em silêncio): a Aeronáutica foi obrigada a antecipar à Polícia Federal as primeiras conclusões do inquérito sobre a colisão do Boeing da Gol com o Legacy, antes de encerrado o inquérito.
Significa que o governo violou duas vezes a norma internacional que proíbe a quebra da confidencialidade de inquéritos técnicos em acidentes aéreos: vazou informações sigilosas de uma de suas repartições (o Cenipa) e utilizou-as de forma imprópria em outra repartição (a Polícia Federal, que teoricamente serve ao Estado e não ao governo).
Os jornalistas não se impressionaram com a revelação do militar comentada em diferentes edições deste Observatório [ver ‘Crise aérea: uma omissão importante‘, 26/7/2007; ‘O fim das cortinas de fumaça‘, 27/7/2007; e ‘Açodamento é mais nocivo que a desatenção‘, 30/7/2007]. Mas o vazamento dos primeiros dados da caixa-preta da segunda tragédia aérea causou enorme repercussão. O repórter Fernando Rodrigues, autor da reportagem da Folha, chegou a ser acusado de favorecer o governo ao confirmar hipótese de erro dos pilotos.
Preferência pela confusão
A questão dos vazamentos está presente na pauta das discussões sobre jornalismo investigativo desde os primórdios do caso Watergate, há mais de 30 anos. Os repórteres do Washington Post (Carl Bernstein e Bob Woodward) jamais negaram que recebiam dicas de uma fonte secreta altamente situada no governo americano (mais tarde celebrizada como ‘Deep Throat’, Garganta Profunda). A diferença é que os sucessivos leaks foram acompanhados por rigorosas investigações, entrevistas, checagens, contra-checagens e só então divulgados.
A praxe brasileira vai na direção oposta: o vazador ou informante merece, a priori, a confiança do jornalista mesmo sem apresentar evidências ou pistas mais consistentes. A verificação é nenhuma – na melhor das hipóteses, mínima. O fenômeno aqui conhecido como denuncismo pode ser avaliado por um dado estatístico inquestionável: no país há dez vezes mais assessores de comunicação do que jornalistas. A máquina de plantar notícias (legítimas ou não) é mais poderosa (ou numerosa) do que os filtros capazes avaliar o seu teor. E como a mídia mantém-se imune ao dever de levar a competição jornalística às últimas conseqüências, os vazamentos raramente são examinados ou contestados publicamente.
Para entender a questão do fornecimento de informações sigilosas para a imprensa é preciso compreender a porosidade ambiental e a informalidade que envolve nosso processo decisório. Nossos administradores e políticos aboliram o sigilo não porque sejam democratas, advogados da transparência absoluta. Ao contrário, preferem a confusão e o atalho é a profusão de segredos violados. Quanto mais vazamentos, melhor; quanto mais versões, menos certezas. O teor da caixa-preta do Airbus foi vazado para os principais veículos de comunicação quase todos os dias no período 25/7 a 1/8 [ver ‘Como se fabricam os furos‘, neste Observatório].
Glória efêmera
Em sua edição de segunda-feira (6/8), menos de uma semana depois de afirmar em manchete de primeira página que a caixa-preta do Airbus indicava falha humana, a Folha de S.Paulo publicou contundente depoimento de página inteira do coronel reformado Antonio Junqueira, ex-chefe do mesmo Cenipa. A denúncia contida no título é grave: ‘Lobby atrasa adoção de regras de segurança’. Mais grave seria se o título focasse a parte mais substantiva da matéria: ‘Investigações foram afetadas pelos vazamentos’.
Principais pontos do depoimento:
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A investigação deveria ser conduzida com o máximo de isenção e sem fatores intervenientes.**
Caixa-preta nunca foi instrumento para se ler como uma cartilha, ela precisa ser interpretada por especialistas.**
A investigação [sobre o Airbus da TAM] já está afetada. Se a comissão concluir por algo que não tem sido aventado vai cair no descrédito.**
A profissão de aviador é talvez a única em que você trabalha grampeado [pela caixa-preta]… Aceitamos esta situação porque entendemos sua finalidade preventiva… Diante da publicidade que se deu aos dados da caixa-preta é possível prever que jamais teremos uma investigação decente [ver íntegra aqui, para assinantes da Folha e/ou UOL].Jornalistas também são monitorados por caixas, porém brancas, transparentes, franqueadas a todos. A glória de um ‘furo’ tem vida breve, dura horas apenas. O mal pode estender-se para sempre.
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