A Folha de S. Paulo é um jornal inteligente, criativo, sofisticado. Seu editorial sobre a TV Brasil, porém, passa uma impressão inversa – parece obtuso, caipira (‘Vácuo de propósitos’, segunda-feira, 25/2, pág.A-2, disponível aqui para assinantes). O Estado de S. Paulo é um jornal nobre, refinado, mas a sua matéria de página inteira sobre o mesmo assunto no mesmo dia tem a finesse de um rinoceronte (‘TV pública ainda mantém vícios de emissora oficial‘, pág. A-4).
A investida simultânea dos dois jornalões é certamente casual. Os dois gigantes são adversários, inadmissível imaginá-los num pool conspiratório em defesa da mídia eletrônica privada que não cansam de verberar.
O editorial da Folha parte de uma premissa equivocada: o governo teria decidido criar uma TV Pública depois do ‘Vedoingate’, às véspera das eleições de 2006, quando a PF descobriu a imunda tentativa de alguns ‘aloprados’ para publicar num semanário um dossiê fraudado contra candidatos da oposição. Alguns setores do governo e do partido do governo, pegos com a boca na botija, igualmente néscios, inventaram um ‘complô da mídia’ e com ele armaram a doutrina de que era imperioso criar uma mídia alternativa ao golpismo da grande imprensa.
Ao encampar esta hipótese como justificativa para concretizar o velho sonho de uma rede pública de TV, a Folha desce ao nível daqueles que produziram o abominável dossiê e esquece o que tem publicado na última década.
Qualidade e transparência
Uma TV Pública ou TV de interesse público é antiga aspiração de intelectuais, cineastas, acadêmicos, artistas de todas as tendências e, sobretudo, de jornalistas. Os maiores prejudicados pela inexistência de uma rede de TV não-comercial são os jornalistas. Os editorialistas da Folha sabem disso porque são jornalistas. Isso não significa que o telejornalismo privado seja inconfiável. Ele é insuficiente. Precário.
Tanto o editorial da Folha como a matéria do Estadão falam na criação de uma nova rede de TV. Ignoram que há décadas funcionam duas redes estatais e esquecem que jamais reclamaram contra seus ‘vícios’. Os sábios editores e nobres editorialistas achavam perfeitamente natural que a antiga TVE gastasse uma fábula para comprar um prédio destinado a abrigar as dependências administrativas e não gastasse um tostão para equipar os estúdios. Jamais abriram o bico contra esta aberração.
As duas redes (TVE e Radiobrás) estão agora em processo de fusão, os novos estatutos da Empresa Brasileira de Comunicação prevêem uma série de mecanismos para garantir a transparência, a qualidade e a eqüidistância da programação, sobretudo no jornalismo. Ninguém garante que estes mecanismos venham a ser bem-sucedidos, mas vale a pena tentar.
Co-produções à vista
As emissoras comerciais são concessões públicas e jamais alguma delas ofereceu qualquer contrapartida em matéria de interesse público. Nenhum editorialista da grande imprensa cobrou das emissoras comerciais a criação de ouvidorias ou conselhos curadores. Nossos opinionistas partem do princípio de que um empresário de comunicação como o bispo Edir Macedo é um empresário confiável. Agora percebem a burrada e recebem o troco.
Nesta cruzada contra a TV pública chama a atenção a brutal diferença de tratamento: sob o ponto de vista institucional e financeiro a Rede Cultura (da Fundação Padre Anchieta, do governo do estado de São Paulo) não difere significativamente da antiga TV Educativa (TVE). Mas os editorialistas da grande imprensa estão ouriçados contra a TV Brasil esquecidos de que não será impossível assistir, dentro de alguns meses, a co-produções com a TV Cultura na grade da rede pública.
Nossos jornalões são sensatos, coerentes, judiciosos, edificantes. Pena que às vezes não reparam no seu monumental voluntarismo.
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