Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

José Dirceu e a mídia amiga

O ex-ministro-chefe da Casa Civil, o homem mais poderoso no governo Lula, caiu. Cortaram os pés de barro de José Dirceu. Agora ele vai à revista Caros Amigos (nº 106, janeiro de 2006) e critica a mídia, a grande mídia.

O caso José Dirceu é a prova mais evidente da existência de uma patologia típica da política – a ambição desmedida pelo poder. Infelizmente a política – de esquerda ou direita – fomenta este tipo de doença. José Dirceu é um bom exemplo porque é daquelas personalidades que têm como objetivo não um projeto de nação, não uma mudança nos paradigmas sociais, mas, principalmente, o poder. Chegar ao poder, manter-se no poder, ser o poder. Foi o que ele exercitou enquanto comandou a Casa Civil no governo Lula. Nada acontecia sem passar pela sua mesa. Ninguém era nomeado sem o seu consentimento. Tudo que era proposta de comissão interministerial tinha ele lá, no comando. Com esse objetivo – ser o poder – conseguiu obrar milagres. Por exemplo, fez com que o PT se aliasse ao que existe de mais reacionário na política.

E teve o mensalão. Foi cassado por isso? Não. Não havia provas. Na verdade, foi degolado pelos ex-amigos, exatamente aqueles inimigos históricos da sociedade brasileira, a direita, com quem – para desespero da esquerda natural – José Dirceu tomava café e dormia na mesma cama. Bem que lhe avisaram: ‘Cria cuervos que te sacam los ojos’, compadre. Ele não quis ouvir. Também lhe disseram, em claro português: ‘Dorme com os porcos e comerás ração’. Não escutou. Sua ambição patológica pelo poder era maior. Estava obcecado em construir um poder eterno para ele, Lula, o PT – como o da igreja, não importa se saindo pela direita, pelo meio ou pela esquerda.

Na verdade, sejamos honestos, José Dirceu apenas radicalizou numa prática política que é comum também na esquerda: atrair aliados para manter o poder. O aliado pode ser um canalha, um bandido, mas sendo aliado, sendo do partido, ou aliado da luta, será preservado. Resultado: José Dirceu morreu (pelo menos por enquanto), e levou junto o Partido dos Trabalhadores.

Tudo isso é apenas um contexto para analisar melhor sua fala à Caros Amigos. Para quem não conhece, a revista expressa o ponto de vista da esquerda, em suas diversas possibilidades. São dezenas de articulistas, sob o comando do competente José Arbex Jr. É a primeira vez que José Dirceu – um esquerdista, como quer dar a entender – concede entrevista à Caros Amigos. Ele que, durante dois anos e meio foi governo, sempre desprezou o veículo. E não só a Caros Amigos, mas todas as publicações alternativas, populares, fora da grande mídia. Sejamos sinceros, não só José Dirceu, mas todo o governo Lula.

Lengalenga inútil

Em certa ocasião, representantes destas diversas publicações estiveram com a Secretaria de Comunicação (Secom), para perguntar por que o governo só botava anúncio na grande mídia, inimiga histórica do povo. Resposta: por uma ‘questão técnica’ – questão de tiragem e de público. Na verdade, quando o governo ou seus tecnocratas querem se posicionar politicamente mas não têm coragem de assumir dizem que é uma ‘questão técnica’. Técnica ou política, direcionar recursos públicos unicamente para a mesma elite que sempre tratou o PT, a esquerda, o povo, com absoluto desprezo, é uma burrice paquidérmica. Esta burrice, porém, continua bem viva e instalada no Planalto. O governo continua mandando a maior parte da verba publicitária àquelas sete ou oito famílias que dominam a comunicação no Brasil. Muito provavelmente, imagino, devido a um acordo feito antes de tomar posse. Aí se explica por que o Jornal Nacional é tão paz e amor nas questões de governo.

Evidentemente, o caso do Planalto não é somente de burrice. Este governo tem uma linha política bem definida. A comunicação – salvo exceções pessoais em alguns nichos do poder – é tratada hoje como nos governos anteriores. Burro foi quem acreditou que havia uma disputa no governo, ou que José Dirceu era de esquerda, como ele tenta provar à Caros Amigos.

Dirceu fez escola. Tem um monte de gente imitando os modos do ex-chefe. Muito provavelmente passou pela sua mesa o bordão repetido por tudo que é DAS, tecnocrata e puxa-saco de governo, de que é preciso respeitar as ‘tradições republicanas’. Uma lengalenga inútil, pretensamente culta, que serve como embalagem aos argumentos evasivos do governo.

Luto oficial

Na entrevista à Caros Amigos José Dirceu reclama da imprensa. Mas e as conversas que teria tido com a Globo para segurar o que não era bom para o governo? Invenção dos seus ex-amigos? Duvido. Tem ainda o caso Waldomiro Diniz. Seu assessor direto. Um homem que dormia em sua casa é acusado de tráfico de influência. Mas José Dirceu diz que não sabia de nada. Como não sabia também, segundo ele, do que acontecia no Planalto, no PT, no Congresso, nas estatais. Não sabia dos filmes em cartaz, dos jogos da seleção, do namoro de Ronaldo com a modelo da moda. Como se percebe, ou José Dirceu vivia na Lua ou acha que o restante da população cultiva uma profunda idiotice.

O caso Waldomiro simboliza como era a relação de José Dirceu com a imprensa que ele critica. Afinal, quando foi bombardeado por todos os lados, em especial pela grande mídia, ele concedeu entrevista exclusiva à Veja – exatamente o veículo que mais batia e continua batendo em Lula e no PT, e de uma forma panfletária, grosseira… Ele foi à Veja, a principal inimiga do partido e do governo! Um ato de burrice? Não, política. A política do poder. Ele só se entendia com quem tinha poder.

Na verdade, José Dirceu sempre teve uma relação íntima com a grande mídia que ele agora está criticando. Vale lembrar que a primeira entrevista de Lula enquanto presidente foi para a TV Globo. Vale lembrar que a morte de Roberto Marinho juntou uma centena de ministros derramando lágrimas sobre seu caixão dourado, rendeu luto oficial e palavras elogiosas do governo ao poderoso empresário. Sobre a Globo vale lembrar ainda a frase de José Dirceu para justificar o empréstimo para cobrir rombo da emissora: ‘A Globo é uma questão de Estado’. Com José Dirceu valia a regra: se tem poder, estamos juntos; ou, pelo menos, não brigamos. Ou ainda: em política não se quebram pontes. Nunca!

Um deus

José Dirceu foi derrubado não só pela mídia, mas pelos ‘aliados’ que juntou a seu lado. Entre estes estavam parlamentares, partidos, empresários, a grande mídia. E foram aliados até quando acharam que era hora de derrubar o sub-rei. E derrubaram. Usando seus expedientes, suas armas. Roberto Jefferson gozava de certa intimidade com o poder, quando resolveu detoná-lo. A Folha de S. Paulo, na falta de assunto, fez um box para provar que José Dirceu desde menino tinha espírito stalinista, estimulado pela formação em Cuba, quando morou por lá. Cuba? Sim, aquela ilha do ‘ditador Fidel Castro’, como diz a Folha.

A turma de José Dirceu foi quem inventou os diversos governos no governo Lula. Há um governo instalado no Planalto, mas há outro no Ministério da Agricultura, outro nas Comunicações, mais um no Banco Central… O Planalto não manda nesses outros órgãos. Em nome de um poder maior, como numa monarquia modernista, distribuíram o poder entre os ‘aliados’ e, para evitar críticas dos amigos, espalharam que era um governo em disputa. Hoje a gente sabe que não há nem nunca houve disputa entre esquerda e direita no governo – houve apenas a distribuição de poderes.

O erro de José Dirceu foi achar que podia comandar para sempre esses aliados, achando que seu poder era eterno, enraizado na lama e na ética. Seu erro foi a prepotência, a arrogância, achar-se um deus. Outro erro dele e da sua turma foi, ao exagerar na ambição pelo poder, desprezar o projeto histórico e político do PT, construído com uma militância que é a base moral do partido. José Dirceu também errou ao não viabilizar um novo modelo de comunicação, permitindo que surgissem novas opções de mídia, como contraponto à hegemonia dos atuais meios de comunicação. Poderia ter incentivado a criação de rádios e TVs comunitárias, mas preferiu o mais fácil – a amizade com as serpentes da mídia – e deixar um problema social (e, principalmente, de respeito ao direito humano de se comunicar) se tornar um problema policial. Uma burrada que o vizinho Chávez não comete. Basta ver o que ele está fazendo pela mídia comunitária e estatal.

Bem longe

Muito propriamente José Dirceu foi chamado de coveiro do PT. Mas é mais que isso: ele foi um dos principais responsáveis por uma atraso de 50 anos na história social deste país – vai ser preciso uma geração para reconstruir uma nova esperança.

Por isso é bom que ele saia da política. É bom que ele saia do PT. É bom que os militantes petistas, os poucos que ainda resistem, aprendam essa lição, e reflitam sobre o modo de fazer política. Espero que tenham aprendido pelo menos que o fazer político nos moldes atuais, com uma esquerda católica e corporativista, pode gerar outro José Dirceu, Delúbio ou Marcos Valério.

É bom que mantenham José Dirceu bem longe do partido. Pelo menos para que apareçam novas lideranças e surja outro modo de fazer política. Uma política que leve em conta a psicologia humana, e deixe de ser essa coisa seca, inumana, antinatural. Uma política que se previna de gente como José Dirceu – eles existem aos milhares e esperam apenas uma oportunidade, na esquerda ou na direita, no partido ou no coletivo, no movimento ou no grupo, para manifestar sua ambição imensa. Não. Não é preciso mudar o rumo. Como muito perfeitamente disse o poeta Thiago de Melo (citado em artigo de José Nascimento Júnior para a FSP): ‘Não tenho um novo caminho. O que eu tenho de novo é um jeito de caminhar’.

Em centro espírita

Os lamentos de José Dirceu à Caros Amigos, defendendo o partido, tentando provar que o governo Lula está à esquerda, e criticando a imprensa apenas demonstram que ele continua morando no seu umbigo e achando que tudo deve continuar sendo feito do mesmo modo. Ou seja, não aprendeu nada. Portanto, embora tenha vindo só agora buscar a esquerda que desprezou nesses últimos três anos, José Dirceu ainda não desceu, ainda vive no seu país das maravilhas.

O quarup é um rito de algumas tribos do Xingu. É mais ou menos assim, num certo dia os índios resolvem homenagear os mortos, digamos, dos últimos 12 meses. Então os parentes se reúnem durante o dia e choram os mortos. Cantam e choram. O pajé está ali, entoando seus mantras, tocando maracas, encaminhando as almas dos mortos para os troncos de madeira habilmente pintados. Os índios passam a noite chorando, lamentando-se da morte, da partida. No dia seguinte, os troncos com as almas são jogados no rio, que vai levá-los à morada final. E fim. Depois é festa. Ninguém chora. Festeja-se a vida.

José parece não perceber que muitos – como o autor deste artigo – já fizeram um quarup para ele, para o governo Lula, para Lula e para o PT. Portanto, reclamação de defunto agora eu só escuto em centro espírita – pelo menos este meio de comunicação não precisa de concessão pública e não faz parte da grande mídia.

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Jornalista, autor do livro Trilha apaixonada das rádios comunitárias, diretor do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal