Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Lá e acolá, política há

O professor universitário Marco Aurélio Nogueira diz em entrevista ao Observatório da Imprensa que há cálculo político tanto por parte da mídia, na forma como apresenta as denúncias de escândalos, como por parte do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que usa as críticas à grande imprensa para tentar blindar a candidata Dilma Rousseff e, no mesmo passo, fazer um aceno a setores mais intransigentes de seu partido, o PT. Marco Aurélio descarta a ideia de que haja algum ‘golpe’ em marcha e comenta as dificuldades de organização social numa sociedade fortemente midiatizada, como a atual.


O professor tem no currículo a passagem por diferentes redações de órgãos de imprensa alternativos, nas décadas de 1980 e 90. Integra conselhos editoriais de diversas revistas acadêmicas e da revista Política Democrática, do Instituto Astrojildo Pereira, ligado ao PPS. Marco Aurélio é professor titular do Departamento de Política da Universidade Estadual Paulista, Unesp, campus de Araraquara. Seus livros mais recentes são O Encontro de Joaquim Nabuco com a Política (2010) e Potência, Limites e Seduções do Poder (2008). Colabora mensalmente como colunista no O Estado de S. Paulo.


A seguir, a entrevista.


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Sociedade midiática


‘Nossa sociedade é efetivamente midiática, no sentido de que nela a mídia está centralizada. A força acumulada pela mídia deslocou o peso relativo das coisas. Há sempre uma dose a mais de espetáculo. Ao menos parcialmente, a atenção da mídia, principalmente da TV, tende a se voltar para o show, em busca de audiência. Nisso, há algo de jogada política e algo de estratégia de negócios.’


Conflito Lula vs. mídia


‘A mídia fez a parte da denúncia – às vezes sem sustentação, forçando a barra e com ênfases exageradas. Houve bastante cálculo político nisso, uma intenção explícita de pesar no processo eleitoral em curso. Do mesmo modo que as reclamações do presidente Lula. Ele podia tê-las feito há três anos, quando já era criticado. O fato de ter verbalizado agora, exacerbado, também tem a ver com cálculo político. Tentou fazer uma blindagem adicional em torno da candidata Dilma, para que, a partir de então, qualquer nova acusação contra seu governo se tornasse suspeita. Lula protesta apoiado na aprovação popular de que desfruta. Ao mesmo tempo, tenta abrir diálogo com áreas mais intransigentes do PT, áreas que não são lulistas. ‘Companheiros, podem contar comigo num ataque à imprensa burguesa’, parece dizer. Mas é evidente que ele tem todo direito de reclamar e, ao fazê-lo, não me parece que esteja a indicar uma predisposição antidemocrática ou de cerceamento da imprensa, como muitos falaram. A democracia comporta tudo isso.’


Histórico de conflitos


‘Algum tipo de rusga entre políticos, candidatos e mídia sempre houve. Casos notórios foram os de [Leonel] Brizola em 1982 [acusou a Rede Globo de dar resultados favoráveis a seu oponente governista, Moreira Franco, na apuração dos votos da eleição para governador do Rio de Janeiro] e o de Lula em 1989 [o debate final entre Lula e Fernando Collor foi editado de modo desfavorável a Lula no Jornal Nacional da sexta-feira que antecedeu a votação do segundo turno]. Mesmo o presidente Fernando Henrique chegou a reclamar do tratamento que recebia de alguns órgãos. Mas eu não me lembro de um clima assim em eleições mais recentes. A radicalização verbal dos diversos protagonistas levou a que muita besteira fosse dita e criou um clima alarmista, como se a democracia estivesse por um fio no país. Como não há nada nesse sentido, só dá para entender que todos tentaram aquecer o ambiente tendo em vista a obtenção de efeitos políticos, eleitorais.’


Fragmentação social


‘A midiatização anda de mãos dadas com uma espécie de radicalização da estrutura em rede da sociedade. Multiplicaram-se muito os pólos, os nós, da rede que é a sociedade, resultado da forte fragmentação da estratificação social e dos incentivos feitos pela rápida difusão das tecnologias de informação e comunicação. Em decorrência, a agregação dos indivíduos em grupos ficou problematizada, dificultada. Ninguém organiza direito essa sociedade. Os grupos sociais não têm uma expressão clara. O próprio conceito de luta de classes muda de figura. Não porque a teoria esteja errada ou porque não existam mais classes, mas porque a realidade mudou. Claro que há lutas de classes, mas numa estrutura muito mais descentrada, diluída. Torna-se precária a homologia entre condição social e pensamento, entre posição social e ideologia. Há diferentes visões dentro de um grupo social.’


Partidos


‘Os partidos com maior personalidade doutrinária ou programática tendem a perder força ou mesmo a desaparecer, enquanto os partidos fisiológicos crescem ou mantêm sua influência. O PMDB é uma estrutura fisiológica capaz de permear a sociedade, pela tradição do nome e pela maneira como, nos últimos anos, se constituiu. O PT tem outra história, que não era fisiológica. O lulismo acabou por levar o PT ao fisiologismo. O PT era ideológico. O lulismo, não. O PT apareceu como proposta de setores de classes. O lulismo, em outra vertente, constitui o PT como partido eleitoral. Ficou, porém, o nervo ideológico. Isso é muito difícil de reverter. Daí porque certos setores vão aproveitar um eventual governo Dilma para tentar criar uma cunha e fazer com que o partido volte a prevalecer, a ter influência. Não jogarão Lula para fora, pois ele é um patrimônio valioso. Vão negociar, pressionar e agir, como se poderia dizer, da boca para dentro, ou seja, em termos de luta interna. Haverá algum tipo de medição de força voltada para isso.’


Tribos políticas


‘Na medida em que os partidos mais ideológicos se enfraquecem, proliferam tribos políticas que atuam por espasmos. Ao mesmo tempo, há movimentos como o MST, que já foi mais forte e também sofreu certo refluxo por causa do fenômeno apontado. Não sei se os quadros do MST conseguem manter uma coesão muito boa hoje em dia. Também eles estão afetados pela pulverização, pela dificuldade de alcançar um pensamento que oriente os diversos segmentos sem-terra e solde seus interesses e seus modos de ver o mundo.’


Sociedade líquida


‘É uma metáfora, de Zigmunt Bauman, bem sugestiva. Vejo vantagens nela. Ela me ajuda, por exemplo, a entender por que os processos sociais (políticos, econômicos, culturais) são tão erráticos, dinâmicos e difíceis de ser controlados, ou porque as pessoas, os cidadãos, os jovens, são tão flutuantes em termos de opinião. Ou, ainda, por que os governos têm tanta dificuldade de governar bem e de estabelecer um padrão de gestão. A partir dessa metáfora, torna-se mais fácil entender por que tudo ficou tão complicado e confuso na arena política e por que a política mais desencanta e afasta do que encanta e aproxima. Há uma crise intrínseca da política, sem dúvida, mas ela também está sentindo as dores de uma dissonância que se estabeleceu entre ela e a sociedade.


‘Os jovens de hoje, por exemplo, são completamente diferentes do que eram os jovens de 15 anos atrás. O modo como se posicionam, a falta de densidade política e ideológica que manifestam, as formas de agir que privilegiam, tudo isso reflete as dificuldades que têm de se inserir nesse mundo ‘líquido’, no qual o futuro mete medo ou está obscurecido. Ao mesmo tempo, não são alienados. Têm outra maneira de se pôr diante dos fatos e de assimilá-los reflexivamente. Será que a mídia analisa o leitor do futuro? Em dez ou vinte anos, se não for feito nada, não vai haver mais jornais e revistas. É bem verdade que muitos órgãos já estão trabalhando ativamente no meio virtual, o que é uma tentativa válida de chegar a um público mais jovem e, por outro lado, a um público mais velho que já se conectou. Mas será preciso avançar ainda mais nessa direção.’


Mídia orquestrada?


‘Não consigo ver isso. A mídia forma um partido golpista? Precisaria ter articuladores ativos de algum tipo de golpe. Se não há isso, a acusação fica muito etérea. Em 1964, um Júlio de Mesquita [dono do Estadão] se reunia com golpistas. Hoje, não há isso. Não há sequer uma unidade mínima entre os grandes órgãos, nem em termos políticos, nem em termos ideológicos. Pode haver, com certeza, uma mesma intenção de ser protagonista, de substituir partidos e políticos na formatação das decisões, mas isso não é suficiente para que se veja na mídia um bloco político em ação.’


Disputa de hegemonia


‘O que há é uma disputa pela alma dos brasileiros, travada por dentro, a partir da mídia. A mídia que pesa não tem presença muito expressiva da esquerda, ou, para usar outra denominação, daqueles que propõem uma democracia mais radical. Esse segmento não dispõe de órgãos de imprensa. Tem que se valer de órgãos que não são dela para entrar na luta pela hegemonia. Há disputa, em parte, na web, mas é muito fraca. Os partidos que conseguem se viabilizar eleitoralmente participam da disputa por meio do governo, tendem a usar os cargos e os recursos de poder que conquistam para melhorar seu acesso aos circuitos de hegemonia. Valem-se dos canais estatais para entrar com mais força na luta pela conquista das consciências. É um expediente inevitável, usado por todos, com maior ou menor discernimento. O modo de vida e a dinâmica dos sistemas empurram os partidos e os políticos para esse uso do aparelho estatal. Talvez seja ruim para a democracia, mas ela tem como suportar isso, ao menos até certo ponto. Pode até mesmo contar com mecanismos sociais de controle dos eventuais exageros que vierem a ser cometidos.’


Aparelhamento do Estado


‘Nesse quadro, o aparelhamento do Estado torna-se inevitável. Não, porém, como parte de um plano para tomar conta do Estado e entregá-lo aos companheiros, mas como algo que integra o próprio jogo político. Você se segura no que você conquistou nas eleições, apoiando-se na legitimidade assim adquirida.’


Fim da imprensa alternativa


‘O que perdeu força, desde o início dos anos 1980, foram os jornais alternativos, que hoje se resumem a muito pouca coisa, com vendagens inexpressivas. Ficou longe o tempo em que havia O Pasquim, Opinião, Movimento, Voz da Unidade, Em Tempo. As editoras de livros se tornaram muito ecléticas, sem personalidade definida, o que não é necessariamente um mal. Os jornais sindicais, me parece, perderam força. É como se tivesse havido um estreitamento dos canais alternativos de comunicação.’


Internet


‘Com a internet, há outro fator a considerar. A própria linguagem da internet ainda não encontrou tradução política para a luta por uma hegemonia que não seja a do mercado. Na internet, a articulação da informação depende desesperadamente da capacidade de ação intelectual do usuário, que pula de link em link e tem que montar seu discurso. O cardápio é inesgotável, ilimitado. E é o usuário que precisa resolver de que modo os pratos serão servidos. Mas me parece evidente que a internet é hoje um campo de disputas e de possibilidades. Faz-se política nela, à moda antiga e de muitas maneiras novas. A internet anuncia uma saída para o estreitamento dos canais alternativos na sociedade midiatizada.’