Paixão, poder, traição, violência e vingança. Às vésperas da eleição acirrada que deu vitória a Dilma Rousseff, a administração petista de Fernando Haddad, em São Paulo, ofereceu na temporada de ópera do Theatro Municipal um magnífico contraponto. Encenadas ao mesmo tempo em que corriam as eleições brasileiras, as óperas se revelaram uma excelente representação das tramas a que assistimos nos debates eleitorais. Em cartaz, I Pagliacci, cujo personagem principal, o palhaço Cannio, começa advertindo o público: “As lágrimas que derramamos são falsas”. Mas, lembra: “Não [se iludam], teatro e vida não são a mesma coisa”. Onde ficção e realidade se distinguem? Onde mais se assemelham.
Na ópera de Ruggero Leoncavallo, que estreou em 1892 em Milão sob a batuta de Arturo Toscanini, a cena de amor entre a Colombina e o Arlequim seria apenas burlesca na arena de circo armada no palco. Principalmente quando o palhaço surpreende os dois e a plateia ri. Mas, quando vira realidade, vive seu momento trágico porque o ator que faz o corcunda Tonio, rejeitado por Nedda, a Colombina, casada com Cannio, o palhaço, delata por vingança ao marido dela que a viu nos braços de Sergio.
O Palhaço, de um ato só, precedida pela Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni, que estreou em 1890 em Roma, tem o desfecho construído com o mesmo instinto de vingança. Santuzza é preterida por Turiddu que recai de amores pela ex-noiva Lola, já casada com outro. Qual a reação de Santuza, antes amorosa e aliada? Vira inimiga mortal e delata Turiddu e Lola ao marido siciliano mafioso, que decide matar o traidor.
Teatro é vida
Teatro e vida não são tão distintos assim como queria o palhaço. Se trocarmos os personagens de I Pagliaccipor políticos e os grupos de amigos e inimigos por legendas e ex-legendas, veremos onde os italianos buscaram inspiração. La vita è cosi.
Se acompanharmos o repertório recente do Theatro Municipal encontramos a cigana Carmen,de Georges Bizet, por cuja luxúria Don José abandonou a farda. Só que, marginal (sem legenda), acabou trocado pelo toureiro garboso. Na ópera eles trocam de parceiros como os políticos de legendas, e tudo acaba em punhaladas ferozes e sangue – como vimos na nossa ópera, às vezes trágica, às vezes cômica, em cartaz na TV, nos jornais e nas rádios nos últimos meses.
E Salomé?No relato de Oscar Wilde, adotado na ópera de Richard Strauss, a vingança foi pedir a cabeça de João Batista numa bandeja de prata. Aquele profeta por quem a princesa de apaixonou perdidamente, quem diria, a rejeitou. E no jogo do vale-tudo ela dança até nua para o poderoso padrasto Herodes Antipas, que detinha o poder no início da era cristã. Herodes ofereceu, pelo espetáculo erótico, todos os reinos do mundo, mas a princesa já era poderosa. O que ela queria era destruir a cabeça, o intelecto, os pensamentos do homem que desejava na sua legenda… mas ele preferiu outra.
Aqui o jogo é de ricos e pobres, como o país parece partido em dois neste momento. A vingança da cigana Azucena, peregrina e pobre, pela morte da mãe atirada na fogueira por ordem do nobre conde de Luna em Il Trovatorede Verdi, foi também jogar na fogueira a criança que parecia ser a herdeira do conde. Mas o gênero humano se engana quando divide a sociedade em duas. Na verdade, quem foi para a fogueira foi o bebê cigano, quem sobreviveu foi o nobre criado como cigano para crescer trovador. E agora o jogo ao inverso. Esse trovador que os nobres acreditam ser cigano é jogado na fogueira por ciúmes, mas se revela ser irmão de sangue do conde. E de vingança em vingança, nem ricos nem pobres ganham a guerra, invencível desta forma, interminável.
Hoje os debates terminaram, as disputas, as mentiras, as agressões, as delações, os métodos cruéis perderam tempo de antena. A imprensa perdeu a graça. O espetáculo político acabou mas sempre nos resta a ficção, a melhor lição da realidade. O espetáculo continua nas excelentes montagens das óperas do Theatro Municipal de São Paulo, com direção artística de John Neschling. Uma temporada a não perder. Teatro é vida, ao contrário do que afirmou Cannio, em I Pagliacci. “Tudo no mundo é burla”, gritou ao final Falstaff, o burlesco personagem de Giuseppe Verdi. E ainda, fim de cena, o grito do palhaço Cannio: “La commedia è finita”.
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Norma Couri é jornalista