Monday, 30 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

“Censurar Monteiro Lobato é analfabetismo histórico”

 

A obra literária de Monteiro Lobato (1882-1948) tem alimentado gerações de crianças e jovens, e não consta que seus leitores tenham formado uma horda racista. Assim mesmo, mais um livro do escritor virou alvo nesta semana da caçada ideológica que tenta enquadrar o criador do Sítio do Pica Pau Amarelo no crime da racismo. A exemplo do que já fizera com Caçadas de Pedrinho, o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) quer banir das escolas públicas o livro Negrinha, lançado em 1920. O que incomoda o instituto são passagens como “Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.” A patrulha acusa a obra de trazer “estereótipos e preconceito”.

“Trata-se de analfabetismo histórico”, diz João Luís Ceccantini, pesquisador de literatura infanto-juvenil e coautor do livro Monteiro Lobato Livro a Livro. “Querer censurar ou modificar em algum grau uma obra cultural é um absurdo.” Estudioso da assimilação da literatura por crianças, Ceccantini acrescenta uma informação ao debate sobre Lobato que demole de vez os argumentos dos censores, que alegam que as obras de Lobato prejudicam a formação das crianças. “Eu tenho estudado a forma pela qual as crianças absorvem o que leem e minha conclusão é que elas sabem identificar os excessos dos livros. Elas se apegam ao que é bom, à essência das histórias – e, no caso de Lobato, essa essência não é racista.”

Confira a seguir a entrevista com o pesquisador.

O que o senhor acha da tentativa de banir a obra de Monteiro Lobato das escolas públicas?

João Luís Ceccantini – Trata-se de analfabetismo histórico, que despreza o tempo em que determinadas obras foram escritas. Querer censurar ou modificar em algum grau uma obra cultural é um absurdo. Deve-se ainda observar outra questão: temos de fato uma educação tão deficitária a ponto de os professores serem incapazes de ajudar os alunos a interpretar passagens que eventualmente façam uso de uma linguagem que já não é mais aceita? Por que não usar esse pretexto para discutir em sala de aula o racismo? É uma grande oportunidade.

O senhor tem um trabalho extenso na área de literatura infantil e acompanha de perto o envolvimento das crianças com a leitura. De que maneira elas são influenciadas pelo que leem?

J.L.C. – Em primeiro lugar, a ficção não tem esse poder todo que a gente imagina. A transferência dos exemplos não é tão automática assim. Em resumo: o fato de eu ler uma história de ficção não significa que vou sair por aí reproduzindo um comportamento da ficção. Se fosse assim, bastava escrever livros com histórias boas e puras para que construíssemos uma sociedade perfeita. Mesmo com a criança, essa transferência não é automática. Eu tenho estudado a forma pela qual as crianças absorvem o que leem e minha conclusão é que elas sabem identificar os excessos dos livros, elas se apegam ao que é bom, à essência da história – e, no caso de Lobato, essa essência não é racista. As crianças entendem que a passagem “macaca de carvão” não faz discriminação com Tia Nastácia, porque essa não é a essência do livro. Ao contrário do que possa parecer, a criança é seletiva. Mais seletiva do que muitos críticos.

Tia Nastácia é retratada ao longo da obra de Lobato de forma bastante positiva. Não é exagero acusar o autor de racismo nesse caso?

J.L.C. – Sem dúvida. Tia Nastácia é tratada de forma muito amorosa em toda a obra de Lobato. Existem milhares de citações afetivas em relação à personagem, que tem uma função crucial na vida dos demais personagens: eles recorrem a ela em busca de conselho, de carinho. Devemos observar ainda que Lobato usa Tia Nastácia como pretexto para criticar a superstição, a religiosidade e o excesso de crença no sobrenatural. Mas não há nenhum traço de ódio racial nessas passagens.

Cartas de Lobato reveladas recentemente mostram a simpatia do autor por teses da eugenia (corrente que defendeu o aperfeiçoamento da espécie por meio da seleção genética e controle da reprodução). Isso deve de alguma foram permear a análise que se faz da obra do autor?

J.L.C. – Lobato foi, acima de tudo, um humanista. Ele lutou pela igualdade, pela democracia e não há um só episódio que o ligue a corrupção em alguma esfera. E ele sofreu muito por isso. Decepcionado com os rumos que o país tomava já naquela época, ele foi um crítico ferrenho do Brasil. Em relação às cartas, não podemos esquecer que todos nós somos frutos da época em que vivemos. Os pensamentos que ele exprimiu nos seus textos eram muito comuns naquela época, como a eugenia. Outros escritores que eram celebridades naquele tempo tinham ideias semelhantes, mas eles não sobreviveram ao tempo. Portanto, pintar Monteiro Lobato como racista é um erro.

O senhor já tinha assistido a discussões semelhantes sobre as obras de Lobato?

J.L.C. – Nenhuma controvérsia envolvendo Lobato é novidade para mim. Ele era uma figura extremamente complexa, e isso faz dele um alvo fácil. Aconteceu em diversos momentos da história. Não se pode perder de vista que estamos falando de um dos maiores escritores brasileiros: se tivesse escrito em inglês, seria um dos maiores de sua época. Sua literatura infantil é de uma riqueza incomparável. Mas, como eu disse, ele é um fruto de seu tempo, como todo nós, aliás. Se sua obra ajudar a discutir o racismo, então vamos discutir – não censurar.

Há casos semelhantes de tentativas de censura na literatura infantil?

J.L.C. – O caso mais notável é o do autor americano Mark Twain (de cuja obra tentou-se suprimir o termo “nigger”,considerado racista em inglês). Mas acredito que tudo isso tem um lado positivo. A literatura costuma circular entre grupos muito pequenos: quando a democracia se fortalece e o nível de letramento da população cresce, temas como esse vêm à tona. O que não pode haver é uma caça às bruxas. Se formos censurar tudo, comecemos por Homero, na Antiguidade: ninguém saíra ileso.

Qual o prejuízo de suprimir palavras ou reescrever trechos de uma obra literária?

J.L.C. – Reescrever a história é uma das coisas mais nefastas que pode haver.

Uma das propostas do instituto que tenta proibir a distribuição de Caçadas de Pedrinhoé enviar o livro para as escolas com um anexo que aponte as passagens consideradas racistas. O senhor concorda com esse “guia de leitura”?

J.L.C. – Se for o preço a pagar para garantir que a obra de Lobato continuará circulando, que coloquem a tal nota explicativa. O problema, contudo, é que assim criaríamos um modelo editorial que supõe que o leitor é bobo e incapaz de chegar a suas próprias conclusões. Não sei em que medida isso é bom. Um dos grandes fascínios da literatura é permitir múltiplas leituras.

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[Nathalia Goulart, da Veja.com]