Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Leitor-espectador como cidadão-cliente

Lages, interior de Santa Catarina, dia de chuva torrencial. Meia dúzia de sindicalistas se coloca em frente ao portão do jornal Correio Lageano. Está um frio de rachar, mas os jornalistas insistem no ato público. Vieram de várias cidades do estado para exigir da dona do jornal, Isabel Baggio, atual presidente do Sindicato das Empresas de Jornais e Revistas, que apareça para negociar, uma vez que estão em campanha salarial e os patrões se negam a ir para a mesa. O jornal fica próximo ao terminal de ônibus e as pessoas passam às dezenas. Observam os manifestantes com olhar curioso, ao que parece aquilo nunca aconteceu em Lages, médio município da serra catarinense.

Com um megafone, Rubens Lunge, presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, conta para os moradores da cidade a vida dura de um jornalista. O povo olha desconfiado; afinal, é sempre comum no interior as pessoas ricas e influentes serem as depositárias da verdade. Isso incomoda demais a empresária, que decide chamar todo mundo para uma conversa.

Dentro do jornal ela aparece, um pouco tensa, e insiste que não havia a necessidade de ninguém se ‘abalar’ desde a capital para um ato como aquele. Mas os jornalistas que ali estão sabem que sim, era preciso. O Correio Lageano é um jornal do interior em nada diferente dos demais jornais do estado, boa parte deles de um dono só, os Sirotski, que já formam um oligopólio em Santa Catarina. Ainda fora das presas da família gaúcha, o jornal de Isabel, tal como os outros, segue os maus exemplos da megaempresa. Do grupo de jornalistas que atua no jornal, poucos deles recebem o piso da categoria, mesmo os que estão registrados como repórter. Outros estão expostos a subterfúgios como o de serem registrados em outras funções. Muitos não têm registro.

Concorrendo com o blogueiro

Agora, em pleno mês da data-base, os jornalistas dos médios e pequenos jornais, como este da presidente do sindicato patronal, também devem entrar na ciranda pós-moderna, que faz a cabeça de 10 entre 10 empresários da comunicação, muito bem amparados no insensamento histérico de boa parte do professorado nacional da área do jornalismo: a idéia do jornalista multifuncional. Palavra bonita e ‘moderna’ que nada mais é do que a velha idéia da superexploração do trabalhador. Não contentes em sugar a mais-valia dos seus jornalistas com salários de fome, os empresários agora demandam que eles sigam as exigências de seu tempo: a flexibilidade, a rapidez e a portabilidade (arg!).

E o que é esta coisa de multifuncionalidade? Qualquer pessoa mais ou menos ligada nas coisas do seu tempo sabe que estas palavras são fluentes na forma societal conhecida como neoliberalismo e que muito estrago provocou no mundo, na década de 90 do século passado. Mas, como cabe a um país colonizado, ainda estamos vivenciando isso aqui no Brasil.

A história da rapidez está associada ao tempo presente, cujo advento das novas tecnologias exige um profissional capaz de informar com mais agilidade sobre o que acontece. A histeria sobre o jornalista é a de concorrer com os blogueiros. Dizem os ‘especialistas’ em comunicação que a internet e os blogs são espaços de informação muito rápida. Um blogueiro pode postar centenas de informações sobre um determinado fato tendo apenas um celular. E isso leva à exigência de que o jornalista também tenha de ter um celular conectado à internet para postar tantas informações quanto um blogueiro qualquer, mesmo que esse blogueiro apenas coloque a informação crua, sem qualquer interpretação ou análise, coisa típica do jornalismo. Assim, as empresas entregam um celular ao funcionário e querem que ele fique colocando informações em vez de centrar-se no fato que está presenciando para, depois, com calma, fazer uma boa análise. Ou seja, acreditar que o jornalista deve concorrer com o blogueiro nada mais é do que diminuir o jornalismo.

O ‘coitado’ que é dono de um oligopólio

Já a flexibilidade é uma linda palavra para coisas tão antigas e feias quanto o sistema capitalista: perda de direitos e superexploração. Em nome da ‘modernidade’ dos tempos de novas tecnologias as empresas querem que os trabalhadores aceitem serem levados para lá e para cá, sem quebrar. Então, exigem que o jornalista contratado como repórter passe a fotografar, faça filminho para colocar na internet, dirija o carro da empresa, poste no Twitter, alimente o blog do jornal ou da TV e, se bobear, varra o chão. Ah, e é bom que se diga, tudo isso tem de ser feito dentro do horário de sete horas, que é o tempo praticado por quase todos os meios de comunicação, apesar da carga horária legal ser de cinco horas. A flexibilidade se configura no fato de que ele exerce todas essas funções, mas ganha por uma só. ‘É a modernidade.’ Além de tudo isso, como no geral as empresas estão entrando na onda de ter também blogs, twitteres e portais, o profissional é ‘convidado’ a contribuir nos demais veículos. Ou seja, cumpre várias funções e ainda trabalha para vários veículos, sem qualquer mudança no salário. Não tem choro, ou o jornalista aceita, ou a porta da rua é serventia da casa. Tem milhões lá fora esperando para entrar, dizem os patrões. E, assim, a servidão voluntária, tão bem descrita por Etienne de La Boétie [Discurso da Servidão Voluntária, Editora Brasiliense, São Paulo, 1982 – vale a pena ler; o texto é curto e contundente], em 1552, nunca foi tão popular.

Por isso, causa profundo pesar observar a alegria com que muitos jovens jornalistas se submetem a esta quase escravidão, acreditando que com isso estão aprendendo e tornando-se mais ‘modernos’. Como sindicalista tenho ouvido relatos de deixar qualquer um de cabelo em pé, como a ‘acusação’ de que o sindicato não deveria se meter em questões ‘tão pequenas’ como, por exemplo, denunciar o fato de um profissional, contratado como fotógrafo, escrever matérias de vez em quando, sempre que o veículo precisar. No mais das vezes, os jovens jornalistas se colocam na pele do dono ou dona do jornal e acreditam que eles têm mesmo muita dificuldade de manter o negócio e que por isso, ‘não custa nada’ ajudar. Mesmo que esse ‘coitado’ seja o dono de um oligopólio, como é o caso da RBS no sul do Brasil.

Prisioneiro de múltiplas funções

A terceira palavra que define a multifuncionalidade é a tal da portabilidade. Assim, o jornalista começa a ser comparado com um aparelho de celular. Nestes, a portabilidade significa que a pessoa que tem um celular pode usar o chip de qualquer operadora, não ficando ‘prisioneira’ de nenhuma empresa. Percebem a violenta crueldade do conceito? Se ele se fixa na nova exigência colocada ao jornalista, fica parecendo que o jornalista, tal e qual o aparelho de celular, também é livre (o celular igualmente não é!). Ele pode transitar de uma função para outra sem qualquer amarra legal, assim como transita entre as variadas empresas do mesmo dono. Tão absolutamente libertador quanto fumar Malboro ou andar de Honda. E os profissionais se encantam com esta possibilidade, sem perceber que a única liberdade de que são portadores, é a de ser explorado com alegria.

Sempre me encantou uma frase de Jesus ao povo, quando questionado pelo fato de que fazia curas aos sábados, descumprindo, assim, a lei judaica. O galileu, com a tranqüilidade dos sábios, sentenciou: a lei existe para o homem e não o homem para lei, deixando claro que um homem verdadeiramente livre subverte aquilo que o oprime. Assim, penso, deve ser a tecnologia. Como qualquer jornalista moderno gosto demais destas novidades tecnológicas que permitem a rápida circulação das informações. Fotos postadas no Twitter, pequenos textos circulando nos blogs, celulares ultra mega powers etc… Mas há uma coisa básica nisso tudo que precisa ser problematizada. Informação não quer dizer jornalismo, necessariamente. Posso postar no Twitter que a cidade de Florianópolis está alagada neste momento. E mostrar fotos dos alagamentos etc…

Mas, estes pequenos textos informativos não dão conta da atmosfera totalizante do fato. E o jornalismo é isso. Na singularidade de um fato dado, aquele que narra precisa transitar pelo particular e atingir o universal, tal qual ensinava o mestre Adelmo Genro Filho. Por que a cidade alagou? Quais os motivos que levaram este bairro alagar e não o outro? Como agiu a defesa civil? Por que estes fatos se repetem, sempre nos mesmos lugares? Quais as conseqüências para os atingidos? Enfim, toda a sorte de interpretações da realidade que precisa ser feita por alguém com olhar aguçado, capaz de perguntar e observar, sem se desviar por ter de carregar a bateria da câmera, ou filmar, ou fotografar e postar em tempo real, e twitar e coisa e tal. Um jornalista é uma pessoa que apreende a totalidade do fato, não é um doidivanas carregado de toda a sorte de ‘portabilidades’ que afugentam a atenção para o que é verdadeiramente profundo. Isso me faz lembrar o exemplo de um repórter fotográfico de conhecido jornal local que, obrigado a cumprir a função de motorista, ao se deparar com um fato em movimento, desceu do carro correndo e esqueceu-se de puxar o freio de mão. Lá se foi o carro ladeira abaixo. Nesse caso, venceu o jornalista e sua visão de agente público de informação. Mas, quantos se lixariam para o carro correndo rua afora? Quantos não voltariam, salvariam o carro da empresa e perderiam a foto? Por isso, repórter-fotográfico precisa estar livre para olhar e capturar o instante. Não pode ficar prisioneiro de múltiplas funções.

Superficialidade transformada em papel

Obviamente que reputo uma importância abissal aos blogueiros de plantão e a toda a sorte de gente que usa as novas tecnologias para repassar informação. Gosto de saber que tem milhares de seres por aí postando coisas, cenas, fotos, informações que, depois, reunidas por um bom jornalista que também viu os fatos, possam ser analisadas em profundidade, dando-se o devido destaque às causas e conseqüências, formando a grande e quente colcha da totalidade que cobrirá o leitor na sua inteireza.

Pesquisas do IBGE dão conta de que o Brasil está vivendo um drástico problema. Os estudantes, e as pessoas em geral, estão perdendo a capacidade de interpretar um texto. Ou seja, as pessoas lêem a informação, mas não conseguem desdobrá-la, compreendê-la na totalidade. Isso não é conversinha de ‘esquerdista’ ou de jornalistas ‘dinossauro’. São os fatos. Pesquisas sérias de institutos sérios. Por conta disso, insistir em centrar foco na mera reprodução desenfreada de informação é desserviço.

É certo que não se pode pedir ao empresariado da comunicação brasileira – que vê o leitor/espectador como cidadão-cliente, como mero consumidor de um produto – que se preocupe com o nível de compreensão da realidade do povo. Eles estão se lixando para isso. Querem vender jornal, querem vender anúncio e fortalecer a mais-valia ideológica que mantém as gentes vinculadas ao sistema produtivo mesmo quando estão em casa, supostamente descansando, vendo TV. Nosso alvo tem de ser, então, os jornalistas.

São eles os que precisam compreender o que é, efetivamente, o jornalismo. Serviço público, espaço de compreensão totalizante do real. Não é papel do jornalismo concorrer com a rapidez internética. Basta a gente se lembrar do tempo dos infográficos, recordam? Os jornais queriam concorrer com a velocidade da televisão e enchiam suas páginas com infográficos descontextualizados. Mostravam muito bem como tinha sido a coisa, mas não explicavam os porquês. Era a superficialidade da TV transformada em papel. Virou febre, mas não durou muito. Assim, penso deverá acontecer com a tal da multifuncionalidade. Será uma febre, e vai passar. Jornalista que faz cinco coisas ao mesmo tempo as fará todas muito mal feitas.

‘Olho vivo, meu irmão!’

É certo que para o dono do jornal, amparado na razão capitalista, será uma dádiva ter um profissional que ganha por um e trabalha por cinco, nos seus diversos veículos. Mas, mesmo eles, ao compreenderem os mais rudimentares preceitos do capitalismo, verão que o tal do leitor, que eles consideram cliente, vai acabar percebendo a má-qualidade. Porque leitor não é ‘Homer Simpson’ como já alegou William Bonner. E, igualmente, os trabalhadores, que hoje se submetem à servidão voluntária, acreditando que com isso estão garantindo emprego ou coisa assim, também terminarão percebendo que a flexibilidade, a rapidez e a portabilidade da multifuncionalidade só os deixam doentes, e não lhes garantem o emprego. Porque, no mais das vezes, quando uma ‘peça’ do sistema falha , ela é substituída por outra, mais novinha e ávida por ser a ‘mais veloz’.

A nós, que atuamos na luta sindical, cabe desvelar as mentiras escondidas sob o manto da nova onda e organizar as batalhas coletivas dos trabalhadores escravizados pela reestruturação produtiva do capital. A tecnologia, os novos e modernos instrumentos de trabalho devem sim ser conhecidos e dominados por todos os jornalistas, mas, trabalhando numa empresa, não temos de ser obrigados a fazer tudo o que a tecnologia permite. Lembrem do nazareno e sua verdade incontestável: as novas tecnologias, que são conquistas de toda a gente, porque se derivam do trabalho socialmente produzido, são muito boas e muito legais. Mas elas foram feitas para nos libertar e não para nos escravizar. Ser multifuncional não é coisa de hoje. Somos profissionais, pais, irmãos, amigos, filhos, colecionamos coisas, praticamos esportes, fazemos artesanato, enfim, atuamos em várias frentes.

O perigo da tal multifuncionalidade só aparece quando ela se transforma numa bola de ferro no nosso pé, a serviço do lucro de alguém. Como dizem os povos de fala hispânica, Ojo! O que na nossa língua mãe significa nada mais do que ‘olho vivo, meu irmão!’ Não caia no conto do patrão. Ele toma champanhe em Paris enquanto tu esperas no posto de saúde, acometido de LER, estresse crônico ou depressão. E, mais tarde, vem a demissão!’…

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Jornalista