No final da tarde de sexta-feira (9/4), o seminário ‘Liberdade de Imprensa e Democracia na América Latina’, organizado por Carlos Eduardo Lins da Silva e por mim, no Memorial da América Latina, em São Paulo, teve a sua sessão de encerramento. O ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto foi o conferencista. Ele falou sobre ‘Mídia e Democracia’. Como debatedores, estavam na mesa o jurista Dalmo Dallari e o jornalista Alberto Dines, fundador e editor deste Observatório. Entre 17h15 e 20h00, três pontos de vista bem distintos puderam dialogar – em alto nível.
O debate mereceu destaque no dia seguinte, sábado, em reportagens de O Globo e O Estado de S.Paulo e, na segunda-feira (12), em nota menor, também na Folha de S.Paulo, sem contar os sites e blogs. Mesmo assim, creio que posso voltar ao assunto para realçar um único aspecto que ainda merece atenção (a íntegra do seminário – que teve ao todo quatro mesas, com diversos convidados – será registrada em um livro que o Memorial deve organizar mais adiante).
Esse único aspecto é a tese defendida por Ayres Britto: a liberdade de imprensa deve ser entendida como um direito não limitado por outros direitos. Ela é um direito absoluto, portanto. Voltarei a isso ao final deste artigo. Por agora, o leitor vai me permitir começar pelo começo – e registrar a essência das três proposições que foram apresentadas ao público presente. Em todos os sentidos, deu-se ali, na conclusão do seminário, um debate franco e, ao mesmo tempo, elegante, como poucas vezes acontece.
Marco histórico
Em sua conferência, o ministro Carlo Ayres Britto – autor do acórdão que deu forma final à decisão tomada em abril pelo STF, declarando inconstitucional a velha Lei de Imprensa, urdida pela ditadura militar em 1967 – reafirmou o alcance dessa deliberação da Suprema Corte. Para ele, a história da imprensa no Brasil pode ser dividida entre antes e depois da ementa (e do acórdão), que, como ele deixou claro, ‘transitou em julgado’, isto é, não é mais passível de contestação.
Não há dúvida de que o acórdão, publicado no Diário da Justiça em 6 de novembro, constitui um documento histórico. Num tempo em que o país ainda se vê forçado a conviver com censuras veladas e às vezes expressas – como é o caso da censura judicial – a decisão do STF é taxativa em desautorizar qualquer restrição à liberdade. A censura judicial inclusive. Cito alguns trechos:
‘A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada.’
(…)
‘Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica.’
No mesmo acórdão, o ministro registrou que a liberdade de imprensa (ou a ‘liberdade de informação jornalística’, nos termos da Constituição) não pode, segundo a lógica da própria Constituição, sofrer restrições em nome da honra ou da intimidade familiar:
‘As relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras.’
Isso significa que, já no acórdão redigido por Ayres Britto, não havia dúvida sobre a precedência da liberdade de expressão do pensamento, da liberdade de informação e comunicação. Toda forma de censura, toda, é inconstitucional.
Na sexta-feira, em sua conferência, com palavras pausadas, frases seguras e de uma clareza incomum no linguajar dos juristas, o ministro desenvolveu o mesmo raciocínio, talvez com mais didatismo.
Explicou que sobre as matérias ‘centralmente de imprensa’, ou seja, sobre o exercício da liberdade, ou o ‘tamanho’ da liberdade, não cabe fazer lei. Não pode haver uma lei que discipline esse direito, pois, nas relações ‘entre a imprensa e a sociedade civil há uma linha reta que não pode ser interrompida pelo Estado, principalmente pelo Poder Judiciário’. Para ele, a lei pode regular temas periféricos ao exercício da liberdade, como o direito de resposta, a indenização, a fixação de horários para os espetáculos, mas não pode haver qualquer interferência do Estado no exercício mesmo da liberdade. Não que a Constituição tenha descuidado dos bens de personalidade como a honra, a imagem, a intimidade familiar (que ‘adensam e expandem a personalidade’); o ministro enfatizou que os abusos da liberdade admitem punição, por certo, mas sempre a posteriori, isto é, após a publicação.
Liberdade para todos
O jurista e professor Dalmo Dallari iniciou sua palestra concordando com Ayres Britto sobre a importância histórica do acórdão, mas ressalvou: ‘Ele é um ponto de partida, não um ponto de chegada, pois essa decisão nos deixou sem nenhuma lei de imprensa’.
Dallari expôs, a partir disso, uma lógica bastante diferente. Recordou o caráter individualista da Revolução Francesa e também da origem da democracia americana. Na França, ele assinalou, os cidadãos eram proprietários do sexo masculino; empregados ou mulheres não tinham os mesmos direitos. Segundo alguns, frisou, ‘quem não tinha propriedade não tinha caráter’. Portanto, quando discutimos hoje o tema da liberdade, é preciso um esforço para não ficar nas mesmas bases do ideário liberal do século 18. A liberdade de imprensa não é apenas a liberdade de alguns, dos proprietários dos meios de comunicação, mas de todos. Além disso, a liberdade de imprensa deve incluir o direito do cidadão de ser informado de modo correto, não distorcido.
Alberto Dines, de seu lado, começou sua participação por um breve um depoimento. Na verdade, ele resumiu o depoimento que apresentara com mais detalhes numa palestra em março, no próprio Memorial da América Latina, durante um seminário coordenado pela professora Cremilda Medina (e que foi sintetizado num artigo recente – ‘A mídia como campo de batalha‘ – neste Observatório). Ele contou que, ao longo da carreira, sofreu mais sanções por mando dos donos de jornais – que viam suas ordens ou interesses contrariados – do que por ordens de governos. Para ele, portanto, a questão da liberdade de imprensa deve ser estudada também dentro do poder que vige no interior dos veículos de comunicação, e não apenas nas relações entre esses veículos e o Estado. Também aí, os presentes puderam ouvir um outro ponto de vista – não conflitante, mas complementar em relação àquele que foi exposto por Ayres Britto.
Direito absoluto, sim
Após as falas dos comentadores, o ministro retomou a palavra. Dialogando com os outros dois integrantes da mesa, sublinhou um traço distintivo do seu pensamento. Para muitos, ele disse, não há direitos absolutos na Constituição. Mas, na opinião dele, direitos absolutos existem, sim, e ele afirmou poder enumerar vinte desses direitos. Entre outros exemplos, citou a inviolabilidade do voto ou o direito de um prisioneiro não ser torturado. Não importa o que aconteça, não há nada, à luz da Constituição, que estabeleça qualquer limite a direitos como esses – eles são, portanto, absolutos.
A liberdade de imprensa, segundo o ministro, pertenceria à mesma família de direitos. Ela pode se autorregular – e deve, segundo expôs. A sociedade, naturalmente, tende a criticar e a impor exigências à sua própria imprensa, o que tende a levá-la a um aperfeiçoamento independentemente de qualquer lei ou ação estatal.
De minha parte, penso que cabe um pequeno comentário.
Com esse arremate, que ainda não foi devidamente observado e assimilado, o ministro Carlos Ayres Britto fecha o circuito do pensamento jurídico sobre a liberdade de imprensa. Não há como entendermos o que significa imprensa livre se não a cultivarmos na categoria de um direito inviolável, fundamental, inegociável – e, mais do que isso, absoluto.
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Jornalista, professor da ECA-USP