Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Liberdade de imprensa ou de interesses?

‘O conceito de liberdade de imprensa não pode ser uma mera extensão do conceito de liberdade de expressão’, afirma Venício A. de Lima, jornalista e professor da Universidade de Brasília (UnB). Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, feita por Patrícia Fachin, ele diz que o direito à transmissão da informação tem servido para garantir a proteção de interesses econômicos de grandes grupos, através da atividade jornalística. Ao lembrar a censura imposta pelo Estado na década de 1960, ele afirma que nos dias de hoje a repressão é imposta pelos meios de comunicação.

Na perspectiva de melhorar o trabalho jornalístico, Lima aposta na mídia livre e comenta que ela pode desenvolver um trabalho eficiente. ‘Em alguns casos, estou convencido de que a internet através de blogs tem conseguido, às vezes, estabelecer uma agenda paralela.’ O importante, destaca, é que esses veículos mantenham-se independentes do governo e das instituições de comunicação.

***

O que é, para o senhor, uma mídia livre, alternativa e independente? Ela tem condições de se manter independente?

Venício Lima – Essa é uma questão difícil de responder. O que é exatamente uma mídia alternativa? No Brasil, historicamente esse termo foi utilizado pela primeira vez no período da ditadura, nomeando a imprensa que surgiu fora do espaço da grande mídia. Essa ficou conhecida como imprensa nanica e fazia oposição ao regime militar. Hoje, esse movimento que começa a surgir, reunindo pessoas que trabalham em veículos que não fazem parte da grande imprensa, tem preferido falar de mídia livre. Penso que, sobretudo, considerando a situação brasileira atual, quando alguém se refere à mídia alternativa, está se referindo a veículos que não estão vinculados aos grandes grupos empresariais privados.

Creio que esse conceito de mídia alternativa, livre, se refere mais a uma mídia que seja independente tanto do governo quanto dos grandes grupos. Claro que essa também será uma mídia inserida no mercado capitalista, mas o importante é que ela seja independente, plural, autônoma, o que a mídia privada não tem sido, nos últimos anos.

A conquista da liberdade de imprensa, embora indiscutível e importante, gerou outro problema: o da falta de regulação e credibilidade da imprensa brasileira, já que os veículos são comandados por grupos poderosos?

V.L. – Me sinto totalmente à vontade para falar sobre isso porque tenho, há muito tempo, argumentado que o conceito de liberdade de imprensa não pode ser uma mera extensão do conceito de liberdade de expressão. Na sua origem, o conceito de liberdade de expressão se aplicava à possibilidade de o indivíduo expressar o seu ponto de vista e publicá-lo. Quando o conceito surgiu, existia um cenário absolutista. Num regime como o nosso, representativo, o conceito de liberdade de imprensa é aplicado à liberdade de grandes grupos empresariais que não são somente empresas de comunicação, mas são também grupos econômicos com interesses em jogo no processo econômico. Essas instituições se transformaram em agentes importantes do processo político, fazem parte do jogo e em muitos casos substituem funções históricas importantes dos partidos políticos.

Não há nenhuma dúvida de que, no caso brasileiro, esses conceitos de liberdade têm servido para proteger o livre-arbítrio das grandes empresas de defenderem seus interesses via cobertura jornalística nos seus meios de comunicação. Trata-se de uma distorção completa da idéia original do que deve ser liberdade de expressão. A mídia esqueceu quem é o sujeito desse direito, ou seja, é o cidadão e não a empresa. Isso é uma base doutrinária das democracias liberais. Um sujeito bem informado é capaz de decidir corretamente no mercado de opiniões e tomar as decisões corretas que interessam ao conjunto.

A questão da credibilidade da imprensa é uma questão mais complicada. Pessoalmente, acredito que a mídia impressa, no Brasil, passa por uma crise de credibilidade aguda. Isso talvez não fique tão visível porque ela sempre foi uma mídia excludente e seu mercado de leitores é muito reduzido.

No caso da radiodifusão, sobretudo a televisão fica vulnerável na questão da credibilidade, porque há uma centralização muito grande na produção da informação. O fato de não existirem concorrentes regionais fortes de informação e entretenimento faz com que essas grandes redes nacionais fiquem protegidas na questão da sua credibilidade.

Essa crise da imprensa está ligada, de alguma maneira, à dependência e ao vínculo da imprensa com partidos e anunciantes?

V.L. – Acredito que, no caso brasileiro, haja preferências claras de alguns dos grupos de comunicação por determinadas posições políticas e até mesmo partidárias. Mas a questão principal que envolve esse debate é o que tem se chamado de jornalismo sitiado. Ela traz várias implicações para a própria natureza do jornalismo. Uma delas é o fato de que as empresas que produzem informação jornalística se transformaram em instituições, do ponto de vista econômico, muito grandes. Esses grupos têm tantos interesses a proteger que passam a exercer, em parte, a censura que antes era realizada pelo Estado.

Eu tenho falado sobre o que chamo de privatização da censura. Vou dar um exemplo recente do que eu estou querendo dizer: um provedor de internet do tamanho do IG está ligado a um dos maiores grupos brasileiros de telecomunicações, a Brasil Telecom, que está, inclusive, num processo de convergência empresarial com outro grupo para se transformar numa das seis maiores instituições de telecomunicações em funcionamento no país. De repente, esse provedor que é, na verdade, de propriedade de um grande grupo de comunicações, pode sentir que seus interesses estão sendo contrariados e simplesmente interromper o contrato com um jornalista que tem seu blog hospedado no site, como aconteceu com o Paulo Henrique Amorim. Nesse caso, não se trata nem de anunciante, nem de partido político e sim de grandes interesses econômicos envolvidos na propriedade do provedor.

Um dos veículos mais criticados nos últimos anos é a revista Veja. O que o senhor considera inaceitável no fazer jornalístico desse veiculo? Qual a sua opinião sobre a publicação?

V.L. – A revista Veja deixou de fazer jornalismo há algum tempo. O veículo já esteve sob o comando de jornalistas diferentes. Começou com o Mino Carta, que desempenhou um papel importante, até que houve um problema de interesses contrariados do Grupo Abril. Ele não cedeu e foi demitido. Mas a Veja que está disponível hoje nas bancas não faz jornalismo. Alguns chamam aquilo de jornalismo opinativo. Eu não considero e não gosto de qualificar como jornalismo. É uma revista que não pode ser vista como modelo de jornalismo. Ela pertence a uma empresa que hoje tem em torno de 30% do seu capital controlado por um grupo sediado na África do Sul, mas que opera em vários países do mundo.

Alguns jornalistas falam da necessidade da mídia alternativa não seguir a agenda da grande imprensa. O senhor acha que isso é possível? Com que fatos noticiosos os veículos alternativos deveriam se preocupar?

V.L. – Isso é possível, e é uma das contribuições mais importantes que esse tipo de mídia pode oferecer. Em alguns casos, estou convencido de que a internet, através de blogs, tem conseguido, às vezes, estabelecer uma agenda paralela. A grande preocupação de uma mídia democratizada é ser plural e diversa, e isso nós estamos falando dentro do campo da mídia liberal que é plural, diversa e responsável eticamente. Essas são as referências que geraram as discussões em torno do que é bom jornalismo.

É inexplicável que um veículo possa fazer uma cobertura, como a feita no caso da febre amarela, no Correio Braziliense, em Brasília. Como tratar de uma questão de saúde pública e interesse coletivo, e desviar-se tanto da realidade apresentada pela informação oficial? A mídia liberal tem como uma das suas funções democráticas questionar, fiscalizar e estar atenta às informações oficiais, mas deve haver o limite da responsabilidade social, quando se trata de um tema desse porte. Em pouco tempo (semanas), o número de casos de doentes já era maior do que os casos confirmados da própria doença, em razão de terem tomado a vacina sem necessidade. Essa cobertura gerou pânico, medo. Por isso, reafirmo que há necessidade de manter a pluralidade, diversidade e tudo isso dentro dos princípios éticos e responsabilidade social.

O senhor acredita na possibilidade de um dia a mídia alternativa pautar a grande imprensa?

V.L. – Acredito que isso seja muito difícil, mas não deixo de ter esperança. Até porque nós estamos vivendo um processo no Brasil, agora com a criação da EBC (Empresa Brasileira de Comunicação). Por mais que possa ser criticada, ela é, de qualquer maneira, um avanço do sistema público de comunicação. A EBC é diferente da mídia livre, mas pode contribuir para aumentar a pluralidade e a diversidade na comunicação brasileira. Se a EBC conseguir se consolidar com as experiências de mídia pública, como aconteceu em outros países, ela vai contribuir para que tenhamos não digo uma agenda dominante, mas pelo menos uma outra agenda que possa não ser evitada pela mídia privada.

Como essa mídia pública vai se manter sendo independente do Estado e da iniciativa privada? Isso é possível?

V.L. – Como as mídias públicas no resto do mundo se mantêm. Ou com a contribuição direta da audiência ou com o financiamento de fundos. A proposta do deputado Walter Pinheiro (PT), no que se refere à EBC, é que haja fundos de contribuição de um fundo comum das telecomunicações. Ela pode sobreviver dessa forma, mas isso não quer dizer que ela não possa ser comercial.

Penso que faz parte das atribuições do Estado tomar a iniciativa da criação da EBC. Entretanto, surge ao mesmo tempo o debate: será que essa mídia será realmente pública ou será estatal? Por outro lado, essa discussão se torna interessante porque poderá ser debatida na prática e não mais na teoria. A partir disso, a sociedade civil poderá ter mecanismos para discutir quem faz parte dos conselhos, como é a administração desse veículo. Assim, será possível discutir se isso que está sendo feito é ou não público. Trata-se de um avanço.