Com mais de 20 anos de atraso, o Poder Executivo finalmente apresentou ao Congresso Nacional um projeto de lei que regula o acesso à informação pública no Brasil. A Constituição de 1988 previu, no inciso XXXIII do seu art. 5º, que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse geral e coletivo, a serem prestadas no prazo da Lei. Esse inciso, em conjunto com o princípio da publicidade na administração pública, também previsto na Constituição, é de aplicabilidade imediata – ou seja, a transparência é uma regra que independe de lei regulamentadora.
Porém, a falta de uma legislação que estabeleça procedimentos para acesso à informação pública, prazos a serem cumpridos e punições no caso de seu descumprimento, terminam fazendo com que o princípio constitucional da publicidade ainda tenha pouco enforcement – em bom português, pouca capacidade de sair do papel.
Se aprovada, a proposição do Executivo, que tramita na Câmara com o número PL 5.228, de 2009, pode representar um grande avanço na transparência da gestão pública no país. Ressalte-se a palavra ‘pode’: uma lei, por mais importante que seja, é apenas um passo para se romper uma longa tradição de segredismo burocrático vigente no país desde os tempos coloniais. Em grande parte, foi justamente essa herança de segredismo que bloqueou por tanto tempo a apresentação de um projeto de lei para regulamentar o acesso à informação pública. E não será surpresa se, mesmo com a legislação aprovada, um árduo trabalho de efetiva abertura dos arquivos públicos tenha de ocorrer.
O atraso na regulamentação
A própria exposição de motivos que acompanha a Mensagem 316, de 2009, na qual o Executivo apresentou o projeto de lei ao Congresso Nacional, admite o atraso na regulação brasileira. ‘Em 2008’, diz o documento, ‘a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco divulgou relatório que demonstra que em 1990 apenas treze países haviam regulamentado o direito de acesso à informação.’ E conclui: ‘Atualmente, mais de 70 países já adotaram essa legislação, enquanto dezenas de outros encontram-se em adiantado processo para sua elaboração’.
De fato, apesar de existirem leis sobre acesso à informação pública desde 1766, com o pioneirismo da Suécia, apenas nas décadas de 1980 e 90 houve, de fato, uma disseminação de liberdade de informação pelo mundo. As profundas alterações políticas causadas pela transição de ditaduras para democracias em várias partes do mundo funcionaram como um elemento propulsor de inovações no acesso à informação nos países atingidos pela onda democrática. Essas inovações incluíram a aprovação de leis específicas sobre liberdade de informação e a promulgação de constituições nas quais os temas ‘liberdade de expressão’ e ‘acesso à informação’ estavam invariavelmente presentes – foi justamente nesse contexto de redemocratização que surgiu a nossa Constituição Federal, na qual ambos os temas ocupam posição de destaque.
No início do século 21, ocorreu uma nova onda de estabelecimento de leis de acesso à informação. Mas se nas décadas de 1980 e 90, os países desenvolvidos foram os grandes protagonistas, dessa vez os países em desenvolvimento passaram a estabelecer legislações para a transparência. São exemplos o México, com sua ‘Ley Federal de Transparencia y Acceso a La Información Pública Gubernamental’, promulgada em julho de 2002 e, mais recentemente, o Chile, que aprovou a lei nº 20.285 sobre ‘Acceso a la Información Pública’ em agosto de 2008. E apenas agora o Brasil inicia um processo que pode lhe dar também, a exemplo de vários outros países, uma legislação que crie mecanismos efetivos de acesso à informação pública.
Negativa de acesso deve ser justificada
A proposta do Executivo para regulamentar o acesso a informações é muito mais ampla do que a simples determinação dos ‘prazos da Lei’, como prevê a Constituição. O projeto, elaborado em conjunto por diversos ministérios e secretarias – a partir de um modelo básico elaborado pelo Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção da Controladoria-Geral da União (CGU) – reitera que a regra é a transparência e que o sigilo somente será aceito para informações pessoais ou que sejam imprescindíveis para a segurança da sociedade e do Estado. A proposição do Executivo vinha sendo gestada pela CGU desde 2005 e segue uma proposta apresentada pela ONG Transparência Brasil.
O projeto estabelece como obrigação dos órgãos e entidades públicas assegurar uma gestão transparente da informação. O objetivo é propiciar ampla divulgação de dados sobre gestão, programas, projetos, metas, indicadores, licitações, contratos e prestações de contas. O projeto prevê ainda que todas essas informações devem estar disponíveis na internet.
Há ainda a previsão de que o pedido de acesso à informação possa ser feito por qualquer pessoa, por meio de qualquer meio legítimo, e que tal acesso deverá ser concedido imediatamente ou, caso a informação não esteja disponível, em um prazo não superior a vinte dias, prorrogáveis por mais dez. Fica proibido exigir qualquer justificativa para os pedidos de informação. A negativa de acesso deverá ser sempre justificada e o requerente deve ser notificado sobre a possibilidade de recurso, prazos e condições para sua interposição.
Projeto será apensado a requerimento anterior
O capítulo IV da proposição trata das restrições de acesso à informação substitui a Lei nº 11.111, de 2005, que atualmente regulamenta as informações sigilosas – e que seria completamente revogada. Logo no início do capítulo, é previsto que informações e documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos, praticadas por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas, não poderão ser objeto de restrição de acesso. Na prática, significa, por exemplo, que os arquivos dos porões da ditadura seriam obrigatoriamente abertos. Também há uma alteração nos prazos máximos de restrição de acesso à informação, que poderiam ser classificadas em ultra-secretas (vinte e cinco anos); secretas (quinze anos) e reservadas (cinco anos). Além disso, todos os documentos classificados de acordo com as regras da Lei nº 11.111/05 como ultra-secretos e secretos deverão ser reavaliados no prazo máximo de dois anos contados do início da vigência da nova lei.
A recusa ou o retardamento intencional do fornecimento de informações que deveriam ser de acesso público é transformada em conduta ilícita pelo projeto. O infrator sofrerá, no mínimo, pena de suspensão. Pessoas físicas ou entidades privadas que se negarem a dar publicidade a informações que deveria ser públicas também podem ser punidos, inclusive com declaração de inidoneidade para contratar com a administração pública.
O projeto de lei nº 5.228, de 2009, ainda terá um longo a percorrer na Câmara e no Senado até que seja (se for) promulgado. Na Câmara, ele deve ser apensado ao projeto de lei nº 219, de 2003, que trata do mesmo assunto e espera há mais de quatro anos por votação em plenário. O autor do PL 219/2003, deputado Reginaldo Lopes, já apresentou requerimento (REQ 4807/2009) no qual solicita a apensação do PL 5.228/09 à sua proposição.
Possibilidade de sigilo eterno
Portanto, há ainda bastante tempo para melhorar a proposta do Executivo – e certamente há o que se aprimorar no projeto do Executivo. Um primeiro ponto a ser revisado é o que determina os sujeitos que estarão submetidos à lei de acesso à informação pública. A redação da proposta do Executivo prevê que apenas os órgãos e entidades públicas deverão prover acesso à informação. Mas é extremamente necessário que pessoas físicas ou jurídicas que recebam fundos ou benefícios públicos – organizações sociais, por exemplo – também estejam sujeitas às determinações de transparência.
A previsão de que o direito de acesso aos documentos utilizados como fundamento da tomada de decisão e do ato administrativo será assegurado apenas com a edição do ato decisório respectivo também é temerária. Primeiro, porque limita sobremaneira a possibilidade do cidadão interferir no desenho de políticas públicas. Segundo, porque, uma vez editado o ato, seus efeitos externos são, na maioria das vezes, imediatos, e há pouca margem para a alteração de eventuais desvios. Melhor seria uma regra que estabelecesse justamente o oposto: que os documentos utilizados como fundamento da tomada de decisão devam ser disponibilizados à medida em que sejam produzidos.
Além disso, ao contrário do que estabelece a Declaração de Atlanta para o Avanço do Direito de Acesso à Informação – um dos mais importantes documentos já produzidos sobre como deve ser o acesso a informações públicas –, a proposta do Executivo possibilita o sigilo eterno de alguns documentos. Isso ocorre porque o Comitê de Reclassificação, entidade que seria criada pelo projeto de lei, teria o poder de prorrogar o prazo de sigilo de informação classificada como ultra-secreta, por prazo determinado, mas sem qualquer definição do número de prorrogações possíveis. Na prática, significa que o Comitê pode eternamente, a cada 25 anos, revalidar o sigilo de determinadas informações.
Mais ampla transparência
Há ainda diversos outros ajustes necessários a fazer na legislação. Na disponibilização ativa de informações, por exemplo, é necessário regular a publicação de minutas de atos normativos, de remunerações recebidas por ocupantes de cargos públicos, de dados sobre outorgas e seus titulares, de informações sobre tramitação de processos, entre muitas outras informações que não estão previstas na redação original da proposta. Também é necessário ampliar o rol de documentos que não poderão ter seu acesso restrito – não apenas condutas que impliquem violação aos direitos humanos, mas também as que representem práticas lesivas ao erário público ou qualquer outro crime contra a administração pública deveriam ser obrigatoriamente publicadas.
A proposta do Executivo sobre liberdade de informação é tardia, por certo. Mas já que esperamos tanto por uma lei de acesso à informação pública, que ela seja ao menos efetiva e que possa de fato contribuir para uma maior transparência da administração pública brasileira. Está agora nas mãos da sociedade a responsabilidade por atuar decisivamente na tramitação do Projeto de Lei para criar uma legislação de fato capaz de trazer a mais ampla transparência à administração pública brasileira.
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Jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília e consultor legislativo da Câmara dos Deputados; editor do blog Museu da Propaganda