Escândalo dos escândalos: o PT quer amordaçar a liberdade, não só de imprensa, mas todas elas, a começar pela cultural. Eis o ‘prato cheio’ do momento da nossa inocente mídia. Tão inocente quanto imparcial, por como trata Hugo Chávez, por como ‘cobriu’ (no sentido de afagar, colocar mesmo o cobertor) a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque e meia humanidade. Por como ‘informa’ (criminalmente, é claro) sobre o MST e os movimentos sociais que ousam reivindicar direitos e a aceleração das reformas estruturais. Por como especula sobre as fraquezas do governo do PT, apostando no seu fracasso, como sempre fez, historicamente. Por como ‘celebra’ o que é privado e ojeriza tudo o que é público.
Este é o primeiro ponto da discussão: quem critica quem e porquê. Tem razão o Ministro Gil, a plena razão: ‘Tem gente que tem liberdade de vender software, mas não pode impedir a liberdade de quem quer DAR software (software livre, é claro)’. Dar e vender, aí a discussão fica no lugar certo.
Cultura deve ser dada ou vendida? Falemos claro. Informação, é mercadoria? Os cidadãos devem pagar por cultura e informação? E se esta tem custo, só quem paga tem cultura e informação? Se cultura e informação dão por resultado a liberdade, então, somente os que pagam por elas têm acesso à mesma? Ou não seria preferível ‘socializar os custos’ e dar a todos, já que esta ‘mercadoria’ é bem particular e permite o desenvolvimento da civilização, como a escola, o leite materno, a saúde geral e a defesa contra o AIDS ou simplesmente a vacina Sabin?
No mundo moderno, cultura e informação são patrimônio de todos, como o ar, como a água. Ou deveriam. Mas não, a sua distribuição encontra-se oligopolizada. Desde a sua gênese, no processo produtivo (que compreende a origem cultural, a raiz, o estímulo primário, a educação, a valorização na nascente) ao processo distributivo (colocação em mídia, exibição, apresentação, promoção disseminação).
Na desregulamentação atual, interpretada como ‘liberdade’, o que se assiste é à libertinagem, à prevaricação, ao abuso, ao uso como poder de controle e dominação. Basta desenhar o mapa da mídia escrita, falada e televisada no Brasil. A quem pertence? Basta analisar a sua estratificação: que tipo de cultura e informação é passado às diversas camadas sociais conforme o seu nível de renda (acesso a jornais, cinema, TV a pagamento, TV pública, rádios, etc.). Temos a informação de classe A para as classes A, e as de classe D para o pobre que está lá na ponta, que só pode ouvir uma rádio em ondas curtas. Mas o segmento mais vulnerável é aquele que se informa quase que exclusivamente pela TV aberta. Novamente é preciso analisar: quantas salas de cinema, de teatro, quantos jornais locais, quantas bibliotecas existem em cada município deste enorme país? Qual o índice de leitura? Uma cifra risível. O meio, por excelência, é a TV aberta, rivalizando em certas áreas com a rádio. Portanto, a exposição ao audiovisual é enorme. De conseqüência, à informação e cultura oligopolizadas. Esta é a premissa, sem a qual não se pode discutir sobre liberdade alguma.
CFJ: debate equivocado
Desfeito o primeiro equívoco — e somente se este estiver bem desfeito — , discutamos sobre o Conselho dos Jornalistas, que inicialmente previa a regulamentação e controle da profissão dos mesmos e na versão modificada fala em controlar outras atividades jornalísticas, ampliando o seu raio de ação para as empresas.
Historicamente, Ordens e Conselhos têm sido redutos de conservadorismo, em todos os países do mundo. Mais propriamente, tratam-se de estruturas feudais que visam primordialmente garantir a rentabilidade e os privilégios das próprias categorias, contra a invasão dos ‘bárbaros’. Todas elas tendem a sustentar uma mentalidade de castas, e quem já tenha tido oportunidade de processar um médico ou um advogado sabe muito bem do que estamos falando. Guardadas naturalmente, certas exceções, bem delimitadas em períodos históricos (ninguém pode ignorar o papel da OAB na ditadura militar, por exemplo).
Na realidade, há outros instrumentos modernos de controle social que funcionam, ou deveriam funcionar, como as próprias organizações sindicais, ao lado das leis e regulamentos vigentes, que razoavelmente exercem controle sobre o exercício de quaisquer profissões. Bastariam as leis do mercado para identificar os ‘maus’ dos ‘bons’ profissionais, não fossem as moitas atrás das quais muitos destes se escondem, entre elas, as ‘Ordens’ e ‘Conselhos’, tais quais lojas maçônicas fechadas e indecifráveis. Mas se o ‘mercado’ fosse apenas o superior tribunal dos usuários, seria bem simples: ninguém contrataria um ‘mau’ advogado. O problema fica mais complicado na ordem da informação ou da cultura: quem ‘informa’ que um sujeito é um mau advogado, político, policial ou juiz? Quem ‘informa’ que um sujeito é um péssimo ‘formador de opinião’?
Ninguém quer abrir mão da prerrogativa, e então o terreno de refúgio do engano é a ‘liberdade’. Ou o ‘Conselho’?
Desfaçamos, portanto, o segundo equívoco: o Conselho não é ruim porque tolhe a ‘liberdade’. É ruim por si mesmo, porque não garante nada. Se barreira deve existir contra o mau exercício da profissão, como já foi dito, esta devem ser as organizações sindicais e as leis vigentes no país, que estão ao alcance de todos e se aplicam a todos os cidadãos, sem distinção de profissão. Ao contrário, o Conselho tende a oficializar as castas, as elites e a elitização da profissão. Cria barreiras ao seu exercício, e tende a ‘proteger’ os escolhidos, os que passaram pelo crivo. Simplesmente não serve. Mas não pelas razões que têm sido apontadas, na falsa discussão sobre a ‘liberdade’. Por isto foi um grande erro da Fenaj ter sustentado esta tese, em lugar de assumir o seu papel de defesa da categoria, no seu sentido econômico, ético, político e moral, sem delegar nada disso a um Conselho.
Analisemos as ‘liberdades’ vigentes: a Folha de São Paulo, notório órgão da imprensa democrática, demite 200 funcionários de maneira brutal e sem maiores subterfúgios. É a ‘liberdade’ de fazer negócios, reestruturar-se por meio de contratação de profissionais menos pagos, estagiários ou aprendizes, para defender o próprio interesse econômico. O Conselho bem pouco poderia fazer frente a esta brutalidade. O Sindicado dos Jornalistas de São Paulo? Limitou-se a ‘lamentar’ a sorte dos próprios associados demitidos.
A tecnologia também dá a sua ‘ajudinha’: a ‘liberdade’ de usar informações digitalizadas, entaladas e distribuídas on line, de usar e abusar de esquemas para driblar direitos autorais, autoria mesmo, intelecto dos pobres seres humanos que tentam contribuir para com o sistema de informação e cultura, os escravos dos porões da mídia, já fragmentados, terceirizados, mercenarizados. Quem conhece a mídia por dentro, conhece bem o que é a ditadura da linha editorial, o draconiano poder dos redatores fiéis ao dono, a restrição do espaço criativo e autônomo para o exercício da nobre profissão.
Não falemos, portanto, em nome das estrelas, dos âncoras, daqueles que ganharam a fama e os spots. Aqueles podem falar com certa ‘liberdade’. Mesmo assim….
Então, o que resta desta discussão, quando vemos que há milhões de excluídos da informação e da cultura? Aproveitemo-nos para solucionar também este equívoco, o do conceito de Informação e Cultura, hoje entendidos como disseminação de lixo importado e baixaria.
Como podem pleitear esses excluídos a verdadeira liberdade, que começa pelo acesso a todos estes bens preciosos, hoje negados? Ao contrário, combate-se à pirataria como o mal dos males, quando se sabe que um dos povos de maior musicalidade da face da terra só sobrevive e impõe o seu direito de acesso à cultura por meio dos CDs e agora DVDs pirateados. É uma linha de defesa, frente a um direito negado. E isto é liberdade conquistada. Ao lado claro, da sua expontânea e irrefreável musicalidade natural, que não depende de CD nem de rádio.
Se estes senhores que se escandalizam têm o receio de ver o seu direito de crítica cerceado pelo PT – e nada disso transparece nem no texto nem no espírito da proposta do Conselho, por mais que este seja ima idéia supérflua e perfeitamente inútil – deve ser por outras razões. Soa estranho que a grande mídia tenha assumido esta campanha alarmista.
Estranho fenômeno, este: o governo do PT pede para ser menos criticado, e que sejam valorizadas as suas realizações. O Presidente pede que se façam campanhas positivas, em defesa da auto-estima do povo brasileiro. Qualquer governo o faria. Aliás, seria de criticar a incompetência com que o faz, no estilo Duda Mendonça, que pode ter sido bom para ganhar uma eleição, mas não serve para manter uma relação verdadeira e sincera com o povo brasileiro. O episódio do spot publicitário utilizando protagonistas e cenários falsos sobre a agricultura familiar é um exemplo notório.
Sobre o governo, a oposição, tradicionalmente de direita, tem o dever de fazer oposição, utilizando-se, para tal, da ampla liberdade de imprensa e de expressão vigentes no país. Sendo ela proprietária de 99% da mídia, tem potentes meios para fazê-lo. E os jornalistas e comunicadores que trabalham para estas empresas, idem.
Então, quem mais deveria temer é uma outra oposição, que exige do PT coerência com a sua história, que não concorda com o rumo conservador do governo. São os petistas de esquerda, os movimentos sociais, uma ampla área sindical, muitos movimentos populares, que se preocupam pelas concessões feitas à direita, aos ‘mercado’, ao imperialismo, às multinacionais, ao setor financeiro, ao ‘velho modelo’ e à velha classe política, enfim, em nome da ‘governabilidade’. Na prática, esta outra oposição está alijada de qualquer mídia importante, resiste nas rádios e tevês comunitárias, nos jornais sindicais ou locais, no Brasil de Fato, nas publicações militantes, na rádio boca-a-boca, na resistência de respeitáveis e corajosos militantes da mídia, enfim, goza de toda a ‘liberdade’ formal, mas não tem meios para chegar ao povo brasileiro no seu conjunto. Contra esta real falta de liberdade, não há insurgência alguma da grande mídia.
Esta é a verdadeira incoerência da proposta do Conselho: em lugar de ampliar os espaços democráticos, dando ‘liberdade’ a quem não a tem ainda, aos excluídos da internet, da TV a pagamento, das gravadoras e distribuidoras de produtos culturais, das salas de cinema e teatro, dedica-se a criar um Conselho de Jornalistas; em lugar de democratizar as freqüências de rádios, quebrando os monopólios, as falsas emissoras ‘comunitárias’ em mãos de empresários, seitas religiosas e políticos, cessando a repressão aos movimentos pelas rádios comunitárias, dedica-se a polemizar com os barões da mídia e seus protegidos, os iluminados de sempre, ainda que muitos tenham um passado glorioso de lutas libertárias.
Por fim, bem venha a proposta da Ancinav, esta sim importante, mas que seja aberta aos reais protagonistas, a toda a sociedade; bem venha uma reestruturação no setor das telecomunicações, da distribuição das freqüências e concessões, da nova mídia digital, mas no sentido de garantir a inclusão total do povo brasileiro no sistema de informação e cultura, protegendo o país – e não a corporação dos jornalistas – da verdadeira invasão da cultura bárbara que está assolando as nossas consciências, a visão de futuro dos nossos filhos, os nossos costumes, a nossa civilização, a própria visão de nós mesmos.
Quanto ao Conselho? No lixo, junto com os outros já existentes, e que teimam em não morrer.
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jornalista, colaborador da TV Comunitária de Brasília e do jornal Brasil de Fato