O governo Lula é, em muitos aspectos, convencional. Para ficar nos exemplos mais óbvios, a política econômica é a mesma da gestão anterior, a relação do Executivo com a sua base de apoio no Congresso não difere muito daquela observada em todas as gestões pós–regime militar e o uso intensivo de instrumentos como as medidas provisórias mostra a dificuldade de ser original para gerir o Brasil.
Um dos aspectos mais originais do governo, no entanto, foi a nomeação de um assessor especial para ler os jornais e revistas e, partindo desta leitura, fazer diariamente uma resenha crítica qualificada da conjuntura política e econômica, apontando ali os erros e acertos do governo. O homem com carta branca para malhar o governo dentro do governo é o experiente jornalista Bernardo Kucinski, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Colaborador antigo do atual presidente, Kucinski fazia este trabalho muito antes de Lula chegar ao poder e até já publicou um livro reunindo as suas ‘Cartas Ácidas’, como chamou as mensagens que enviava, também diariamente, ao então candidato a presidente durante a campanha de 1998.
Desde o início do governo petista, o professor acorda cedo (às 5h30), lê os grandes jornais brasileiros e escreve suas análises – uma espécie de contraponto ao que os áulicos palacianos fazem chegar aos ouvidos do presidente. Pode parecer bizarro, mas Lula paga um assessor para lhe advertir sobre o que está indo mal em sua administração.
Por deferência do próprio presidente, o material logo passou a ser enviado, por estafeta, às 8h30 da manhã, a 12 ministros de Estado ou secretários com status de ministro. Ficou combinado que, logo após a leitura, todos colocariam a ‘Carta Crítica’ do dia, como é conhecido no Planalto o material produzido pelo professor, no triturador de papel.
Bernardo Kucinski não elabora um ‘clipping’ e tampouco faz ‘media criticism’, mas analisa, sempre muito acidamente, os atos do governo, com base na leitura da imprensa. Na Esplanada, é conhecido como ‘o chato do Kucinski’. Semana passada, as cartas do assessor ganharam as páginas dos grandes jornais brasileiros. Foi o segundo vazamento em quase dois anos. Da primeira vez, porém, a ‘Carta’ vazada não chegou à imprensa. Curiosamente, na mesma semana deste segundo vazamento, os jornais também abriram amplo espaço para as opiniões que Kucinski externou em entrevista a um jornal editado por estudantes da USP (leia no Entre Aspas a íntegra da entrevista).
A ‘Carta Crítica’ vazada foi resumidamente publicada no dia 18, quinta-feira, pelo jornal O Globo. Nela, Kucinski registra que as discordâncias entre o ministro José Dirceu e o presidente Lula sobre a condução política para manter o PMDB na base aliada geraram comentários desfavoráveis ao governo na imprensa – uma óbvia referência ao contundente artigo do colunista Villas-Bôas Corrêa publicado no Jornal do Brasil do dia anterior. Na mesma carta, segundo O Globo, o professor também pregava a permanência de Carlos Lessa à frente do BNDES.
Já a Folha de S. Paulo publicou na sexta-feira, dia 19, um resumo da entrevista de Kucinski ao universitário Jornal do Campus, destacando, naturalmente, as opiniões mais negativas do assessor sobre o governo Lula. No mesmo dia, no Painel, a Folha deu quatro notas sobre o caso. Segundo o OI apurou, todas as informações publicadas nas notas estão erradas: a Folha informa que o boletim ‘Carta Crítica’ teve a sua circulação suspensa. Não é verdade, as cartas de Kucinski não pararam um só dia na semana passada, mas tiveram a circulação restrita ao núcleo duro do governo. A Folha também diz que Bernardo Kucinski ‘não teve uma reunião com o presidente desde a posse’. Também não é verdade, o professor teve diversos despachos com Lula. Por fim, o jornal informa que Kucinski estaria decidido a deixar o governo no fim do ano. Pelo que o OI conseguiu apurar, ele não está disposto a pedir o boné e só sairá do governo caso seja afastado.
Tudo somado, algumas conclusões podem ser tiradas deste episódio. Por um lado, é óbvio que a função de Bernardo Kucinski é bastante delicada e o vazamento de suas cartas revela uma crise no primeiro escalão do governo. Alguém – um ministro de Estado ou secretário com tal status – vazou para a imprensa uma informação confidencial, rompendo assim um pacto firmado com o próprio presidente da República. Isto é grave.
Por outro lado, a imprensa deu demonstrações de que Kucinski está correto em sua análise ao Jornal do Campus, do baixo padrão da cobertura política nacional. As notas do Painel da Folha parecem ser pura ‘plantação’ de gente com interesse em derrubar o professor do cargo. Aparentemente, a Folha não conseguiu ouvir Kucinski ou não se interessou em publicar o chamado ‘outro lado’, tão caro ao Manual de Redação do jornal.
Ao fim e ao cabo, se a crise aberta com o vazamento das cartas de Kucinski tiver o poder de afastá-lo da assessoria, o grande derrotado será o presidente Lula, que perderá um assessor qualificado e ficará à mercê justamente dos áulicos que costumam freqüentar palácios.