Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Lições da maçã

Há quem o compare a Thomas Edison (1847-1931), o prolífico inventor e empresário americano, que ao longo de 84 anos patenteou mais de mil itens, alguns cruciais para o desenvolvimento dos meios de comunicação. Steve Jobs, inventor, empresário e gênio de marketing, com apenas 55 anos já registrou 250 novidades – todas no campo da tecnologia da informação.


Escolheu a maçã como inspiração e a Apple que ajudou a fundar em 1976 tornou realidade o sonho do computador pessoal. As fantásticas maquinetas que vem lançando em ritmo frenético seguem o projeto inicial de mudar o mundo.


Há duas semanas, Steve Jobs interrompeu as férias no Havaí e montou um circo hightech para explicar os defeitos do iPhone-4 que estavam derrubando as ações da empresa em Wall Street. Num cenário onde costuma celebrar seus êxitos, montado no tapete mágico da tecnologia, Steve Jobs foi obrigado a reconhecer pateticamente: ‘Não somos perfeitos!’.


Processos sutis


A infalível maçã – fruto proibido, fonte do saber e da bem-aventurança – também é vulnerável aos bichinhos da arrogância e, se comida às pressas, pode produzir engasgos. Steve Jobs entalou-se com a sua maçã, refez-se, porém a legião de clones que o obedece religiosamente não assimilou o significado do acidente com o gadget.


A falha logo será corrigida, outras engenhocas logo estarão à venda nas lojas da Apple, mas no brevíssimo desabafo deste Midas digital é possível detectar o estranho timbre da decepção. Reproduzido instantaneamente nos quatro cantos de um mundo instantâneo criado pelo próprio Jobs, a irônica admissão – ‘Não somos perfeitos!’ – tem algo de trava e de travo. Lembra freios, sabor amargo.


Parece reconhecer onipotências e delírios, sugere insegurança. Lembra que a perfeição é lapidada pelo tempo e pela temperança. O espasmo de humildade que não soube reprimir tem algo de estalo, raio de luz, percepção súbita. ‘Não somos perfeitos!’ significa que o mundo gosta de mudar, mas desgosta do frenesi; mudanças sem acomodação levam ao caos.


Remete-nos ao passado, lembra que a humanidade é avarenta, não desperdiça seus avanços – remos, roda, roldana, leme, catavento, bússola e livro aí estão para comprová-lo. A própria maçã – inicialmente encarnação do pecado e depois resgatada como marca do conhecimento – revela a existência de sutis processos de adaptação que os vanguardeiros geralmente não encaram.


Cultura da lantejoula


‘Não somos perfeitos!’ é o reconhecimento cabal da obsolescência, o descrédito do dernier cri e do upgrade, tão perenes quanto bolhas. O pontinho no ‘i’, ícone da infalibilidade tecnológica e também da Apple, nem sempre representa a precisão: com dois ou três pequenos tropeços iguais ao do iPhone-4 pode converter-se em logomarca da vacilação.


O fugaz momento de perplexidade exibido pelo mago das certezas deveria inspirar políticos, ambientalistas, economistas, autores, filósofos, utopistas, estrelas, celebridades, candidatos a heróis. ‘Não somos perfeitos’ é um maravilhoso antídoto contra a cultura da lantejoula e do triunfo fácil. Steve Jobs pode fazer história como ídolo caído e iluminado.