No mesmo momento em que um dos grandes jornais brasileiros classifica, em editorial, que a ditadura militar brasileira foi uma ‘ditabranda’, países vizinhos como o Uruguai se esforçam por não deixar a memória recente a respeito de sua própria ditadura cair em cômodo silêncio em nome da democracia ou de revisionismo comparativo em termos de melhor-pior em relação a experiências de governos de exceção em outros países.
A memória sobre o período da ditadura militar (1973-1085) no Uruguai está viva, continua dolorida, e sob constante debate. Faz parte do cotidiano da população e tem sido mantida, de forma crítica, pelas políticas atuais de Estado, ainda que sob ataque da oposição ao governo de Tabaré Vasquez. Três exemplos concretos chamam a atenção e nos levam à reflexão sobre os acontecimentos das últimas semanas no Brasil e sobre a forma como a memória sobre as ditaduras é preservada e construída continuamente nas democracias latino-americanas.
Desde a volta às aulas nas escolas públicas no país vizinho, os jornais uruguaios mostram a mais recente polêmica a respeito da decisão de incluir conteúdo sobre a ditadura, as perseguições políticas e o exílio de cidadãos uruguaios de esquerda no programa oficial de ensino para crianças que cursam o sexto ano do que chamamos no Brasil de ensino fundamental. A edição de segunda-feira (9/3) do jornal El Observador destaca o tema em manchete de primeira páginas (ver ‘Inclusão de história recente em escolas abre polêmica‘).
Equilíbrio delicado
As reportagens mostram como a decisão é mais um passo em direção ao debate público sobre como lidar com os anos de chumbo e o que fazer para que eles não se repitam. Uma das preocupações da oposição é que se faça uma ‘lavagem cerebral’ nas crianças a favor dos então movimentos de resistência encabeçados pela esquerda. Outro temor é de que os professores não sejam imparciais ou éticos ao contar sobre a história recente do país, omitindo fontes ou distorcendo informações para o lado de perseguidos ou perseguidores. Mas professores e historiadores, de acordo com a reportagem, defendem a decisão.
Na mesma segunda-feira (9), a manchete do jornal La República (ver aqui) destaca a frase ‘Por que el olvido del pasado no puede ser el precio del futuro’. Em editorial, o diretor do jornal defende a campanha para coleta de assinaturas para anular a chamada Ley de la Caducidad, que foi aprovada durante o governo de Julio Sanguinetti, em 1986, ratificada em referendo pela população anos depois, e considerada inconstitucional no último dia 25 de fevereiro, pelo Congresso uruguaio. A lei é uma espécie de anistia; determina, na prática, a impunidade para crimes cometidos pelos militares durante a ditadura, e acirra os ânimos sobre a punição para acusados de crimes de tortura e morte por motivos políticos.
Uma mostra de como a atual democracia uruguaia passa por escolhas políticas difíceis como esta é que um dos compromissos firmados por Vasquez para se eleger foi não mexer na lei. Mas, agora, em plena campanha pré-eleitoral para a presidência em 2010, o equilíbrio delicado sobre como tratar os crimes cometidos pelo Estado militar no passado volta a se tornar tema presente na agenda pública.
Modos diversos
Por último, turistas desavisados ou cidadãos menos conectados podem se surpreender, no meio da rua, com instalações como as que vi na Calle 18 de Julio, onde retratos de pessoas mortas durante o período de repressão estão colocadas em uma vitrine ao lado de uma foto de um dos generais-presidentes. Na frente, colado ao vidro, um texto chama a atenção dos transeuntes e convida à reflexão, sem meio-termos nem ponderações:
‘El imaginário de los dictadores esta condensando en ese traje, la moñita de mozo de casamiento e la banda presidencial robada. Este tipo de personajes tuvieran um costo en vida de compañeros e compañeras, en años de cárcel, destierro e miserias varias. En realidad este señor ridiculo, vestido así y rodeado de los pequeños retrativos de ellos, simplemente nos plantea que los sueños delirantes de la algunos tienen la contraparte de dolor e sufrimiento’
Esta é uma das instalações espalhadas como pequenas mostras itinerantes em Montevidéu pelo Museo de La Memória, que congrega órgãos públicos como a Intendência Municipal e associações civis de direitos humanos, e cuida da recuperação e preservação da memória sobre o período da ditadura. No exemplo da mostra itinerante denominada de ‘El General e Ellos’, e nos demais citados, pode-se perceber a força da sociedade civil uruguaia que, mesmo de maneira lenta e contraditória, opta por encarar suas feridas de forma aberta, buscando conhecer sua própria história e elaborar sobre ela, sem relativizá-la como melhor ou pior do que as de outros.
Como seria a cobertura jornalística de uma mostra como esta sobre a ditadura brasileira, no Brasil? Como os jornais cobririam os termos utilizados no texto que identifica a mostra? Se fôssemos raciocinar pela lógica que condiciona a ‘dureza’ de uma ditadura com a quantidade de cidadãos mortos ou desaparecidos, parece, a cobertura seria branda…
É interessante pensar que se, num passado não muito distante, ainda na década de 1980, Brasil e Uruguai, guardadas as devidas proporções, viviam sob as ordens de governos militares e passaram por transições democráticas, hoje, em pleno século 21, as duas sociedades têm lidado de modo diferente com a memória de um passado sombrio.
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Jornalista e doutoranda em Comunicação pela Universidade de Brasília